quinta-feira, 17 de maio de 2007

O lado b do maestro



Fátima Guedes continua a mil. Cantora e compositora com mais de três décadas de carreira, ela, ao contrário de tantos outros nomes, tem mantido o arco da sua criatividade sempre teso.

Carioca nascida no subúrbio, ela teve seu reconhecimento público conquistado junto ao boom de compositoras femininas ocorrido na MPB no final dos anos 70, despontando para o sucesso ao lado de Sueli Costa, Joyce e Ângela Rô Rô.Nas vozes de Wanderléia, Nana Caimmy, Simone e Elis Regina, suas canções realçaram aquilo que desde sempre tiveram: coesão, densidade e qualidade insuspeitas.

Prestes a completar 50 anos em 2008, Fátima nos brindou recentemente com seu “Outros Tons”, álbum que tem como base o repertório pouco conhecido do maestro soberano Tom Jobim (1927-1994). São canções até então encobertas pelo tempo, perdidas entre os clássicos já interpretados pelo nosso maistren musical.

Idealizado e produzido por Marcus Fernandes, o álbum apresenta 12 faixas que cobrem o período de 1953 a 1964, ou seja, antes do nascimento oficial da bossa nova (1958) e depois de seu reconhecimento internacional, ocorrido no histórico show do Carneggie Hall, em Nova York (1962).

Trata-se de um verdadeiro mergulho sentimental na primeira fase da carreira do maior compositor moderno brasileiro, quando este, ainda jovem e recém casado, ganhava a vida nas famosas boates de Copacabana, como Ranchinho do Alvarenga, Vogue, Bambu Bar, Tassa, Mocambo, Tudo Azul, French Can-Can e Acapulco.

“Não era fácil. Tom chegou a desconfiar daqueles que previam a sua morte por tuberculose, pois o trabalho na noite não se limitava à tarefa profissional propriamente dita, mas um ritual que incluía uma boemia fundamental para o próprio trabalho”, fez registrar o jornalista Sérgio Cabral em seu livro sobre Jobim.

“Outros Tons” reinventa, com apuro técnico e originalidade, todo o ideário bossanovista (amor, dor, tristeza e alegria), sobretudo, pelas pelo clima intimista que determinados arranjos ganham a cada audição. A voz da intérprete oferece todo seu talento e delicadeza, valorizando as harmonias e melodias sofisticadas e acessíveis do compositor.


Madrugadas intermináveis

Fátima vem acompanhada por Paulo Midosi (piano), Ronaldo Diamante (baixo) e Élcio Cáfaro (bateria), que juntos, reconstroem o clima de uma época outrora delicada, um Rio de Janeiro mítico, cuja atmosfera podia ser ouvida em suas músicas.

Há preciosidades como as duas primeiras canções gravadas de Tom. Em “Faz uma semana” (Jobim/João Stocler), de 1953, os versos traduzem um estado de espírito. “Faz uma semana/Que não vejo o meu amor?/ Faz uma semana/Que eu não sei onde estou/De manhã cedo/O sol tão claro,/Dói nos meus olhos/Como me dói esta saudade/ De você, de você”. Minto?

Já no caso de “Incerteza” (1956), estamos diante de um pequeno achado da pioneira parceria do maestro com o pianista Newton Mendonça. Amigos de infância e noitadas, ambos mostram neste samba-canção o que o gênero tem de melhor.

A dupla reaparece em “Lua e batucada”. Samba moderno e urbano, datado de 1957, que puxa o cordão da alegria em versos inesquecíveis. “Fala bateria!/Bate meu pandeiro!Despeja tamborim!Assim../Que este samba é/Dono do terreiro/Manda na cidade/Sacode o mundo inteiro”, ponteia o refrão.

Piano solitário

A cantora e compositora reavalia o lado letrista de Tom gravando três canções representativas do período. “Olha pro céu” (1960) - grande momento introspectivo cercado de lirismo, “Pra não sofrer” (1962) e “Pensando em você” (1953).

Canções estas que exemplificam temas caros ao compositor, como é o caso da ecologia (“Velho riacho/Que vem lá de serra/Cantigas antigas/Me contou”) e o amor no cotidiano (“Eu vivo sempre a esperar/Um dia a mais, outra canção/Eu cantei pra saudade enganar”).

Parceria eterna

Tom Jobim e Vinícius de Moraes simbolizaram um casamento perfeito dentro da MPB. Música e letra da mais alta estirpe. Eles se conheceram em 1956, no famoso Villarino, bar de Copabacana que abrigava a nata da intelectualidade carioca. Uma parceria breve, mas eterna.

Fátima pesca ainda duas belas canções deste período fértil da dupla. A primeira é o samba “Na hora do adeus” (1960). Nos versos, o poetinha manda seu recado sem choro nem vela. “O amor só traz tristeza/Saudade, desilusão/Porém maior beleza/Nunca existiu pra iluminar/Meu pobre coração”.

Segue-se “Vida bela (Praia branca)”, já gravada pela inesquecível Elizeth Cardoso em seu emblemático LP “Canção do amor demais” (1958). Perdida entre outras obras-primas do disco, ela novamente ressurge, mostrando toda plasticidade de imagens e sua riqueza sonora.

Há também duas parcerias com Luiz Bonfá, compositor versátil, capaz de criar pequenos clássicos como a “Chuva caiu” (1956) e “Engano” (1964). Gol de placa.
"Outros Tons” se consolida como um marco importante na ampla discografia dedicada à obra do maestro. Prova de que sua música permanece como uma inesgotável fonte de pesquisa para novas aventuras como está empreendida pela artista.

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