sábado, 25 de agosto de 2007

Nas Quebradas de Nêgo Dito e Cia.


América Latina. Brasil. Estamos em Londrina, capital paranaense, na noite do dia 9 de março de 1973. As cortinas do Teatro Filadélfia se abrem para a estréia do show “Na Boca do Bode”, promovido por um bando de artistas locais talentosos, sufocados pelo regime militar vigente, que tentavam (re) fazer o novo, lançando seus dados em busca do acaso.

Foi pegando carona neste aparente insosso acontecimento, que flutuava fora de nosso eixão surrado Rio-Sampa, que Fabio Henriques Giorgio, paulistano, apaixonado por música, acabou por descobrir todo o embrião daquilo que alguns anos depois viria a ficar conhecido como a Vanguarda Paulista, cena musical cuja originalidade e ousadia fez arrepiar tanto o underground como o maistrean brasileiros.

Trocando em miúdos: a descoberta de um coro talentoso de músicos, cantores e compositores que unia experimentalismo e tradição. A pororoca estava formada. Itamar Assumpção, vulgo Nêgo Dito, Arrigo Barnabé, os grupos Rumo, Premê e Língua de Trapo, entre outros, plantavam suas bandeirolas na música (im) popular brasileira.

Estas e outras histórias estão contidas em “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito”, livro lançado por Fabio Henrique em 2006, através de recursos próprios e do PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) da Secretária Municipal de Cultura de Londrina (PR) e SERCOMTEL.

Na longa e substanciosa entrevista abaixo, Fabio Henriques descreve a construção de sua narrativa, analisa o legado musical e conceitual do movimento, a condição de marginal de Beleléu e revela nomes pouco ou nada conhecidos que estão fazendo a história da musica popular urbana e cosmopolita no Brasil de hoje. Divirtam-se.
- Como nasceu a idéia de escrever “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito”?
- Em meados de 2000, toca o telefone de casa e uma voz conhecida, antes que eu pudesse sequer identificá-la, me aborda com um tom de urgência: - Você topa pesquisar sobre o Lira Paulistana* comigo? Não recuei ante ao abrupto convite, mas antes que engasgasse expirei o ar em resposta: - Hã?! Claro, não foram absolutamente essa a pergunta, a resposta e os desdobramentos... O fato é que alguns meses depois, eu e meu amigo, o poeta e historiador Marcelo Montenegro, iniciávamos a pesquisa, que tomaria mais de três anos de investimentos numa obstinada busca, que renderia ainda várias interrupções e retomadas. Inevitáveis desvios de rota acabaram motivando a saída do Marcelo da empreitada – pelo menos ele aceitou o convite para escrever a apresentação do livro, afinal, foi graças à sua “proposta indecente” que eu me meti nessa enrascada... Na verdade, nascido quase assim, o projeto se transformou demais no intercurso dos acontecimentos. Primeiro, mudou-se o objeto. Depois, o suporte. Explico: ao descobrir a existência de um show coletivo que reuniu pela primeira vez num mesmo palco dois dos principais protagonistas daquilo que ficou conhecido como “Vanguarda Paulista” ou “Geração Lira Paulistana”, os compositores Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, percebi ali algo singular, fundamental para a compreensão das estéticas e trajetórias deles e de seus contemporâneos. Conclusão: a pesquisa acabou revelando que um dos embriões do cenário cultural paulista do final da ditadura - que legitimou a intensa e inventiva produção musical sediada na cidade de São Paulo no início dos anos 80 - teria sido esse show coletivo paranaense de nome tão singelo: “Na BOCA do BODE”. Da idéia dessa pesquisa gerar um vídeo-documentário, materializou-se esse livro - um documento histórico que visa perpetuar e esclarecer alguns fatos recentes, a erupção de um dos momentos mais criativos e significativos da música brasileira pós-tropicalismo.

- Gostaria que você detalhasse como se deu à pesquisa de campo para chegar ao resultado final deste trabalho. Pintou muitas dificuldades ao longo de todo processo de composição?
- Basicamente, foi através de entrevistas, coletas de depoimentos - fiz mais de 50 entrevistas formais e informais, meu livro tem muito de história oral -, e da análise de documentos e jornais de época. O maior complicador foi cruzar as diferentes versões dos fatos relevantes, triar material, extrair alguma verdade significativa ou uma narrativa ao menos desse exercício. Esse entendimento é crucial para que novos pesquisadores e interessados em empreender semelhante aventura não se iludam à respeito dessa atividade e seus meneios. Quero dizer, é impressionante como quando elaboramos um projeto para tal ou qual finalidade não temos a menor idéia do tipo de problemas que enfrentaremos no transcurso dessa realização. Ou seja, cumprir um cronograma de trabalho sem atrasos consideráveis é tarefa hercúlea, quase impossível numa pesquisa com essa amplitude.

A seara fértil das terras vermelhas de Londrina


-O que aparece nas entrelinhas da narrativa é uma cidade de Londrina em plena efervescência cultural, repleta de grandes festivais de música popular, manifestações de poesia, artes plásticas etc. Você acredita que este tipo de experiência pode ser vivenciada nos dias de hoje em outras regiões brasileiras?

-Com toda certeza que se pode ter em início de século, àquela Londrina do final da década de 1960 foi algo sui generis. Do espírito empreendedor que ali brotou ao caráter de resistência dos festivais, que contemplaram todas as áreas artísticas, um legado de expressivas possibilidades desabrochou – literalmente falando –, seus desdobramentos puderam ser percebidos na música, com a Patife Band; na poesia, com Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção e Marcos Losnak (editores da imprescindível revista Coyote); na dramaturgia, com Mário Bortolotto, Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes. No entanto, hoje, apesar dos descaminhos de nossas políticas públicas, que deixou imensos vazios nas demandas populares por cultura e conhecimento, é amplamente possível acontecer algo parecido mas não saberia com alguma precisão dizer como. É sabido que os ideais coletivos de enunciação foram abortados em detrimento da lógica do sucesso individual, do carreirismo, imposição do capitalismo e suas artimanhas, do mercado de trabalho e sua mortalha. Basta nossas antenas entorpecidas pelo medo, poluição e pela publicidade se re-ligarem e veremos toda a produção de bens imateriais que pipoca da Amazônia ao Rio Grande do Sul, aí sim teremos idéia de como esse fenômeno se renova, mesmo não ocupando o grande mercado tão alardeado pelos teóricos da terceira via e pelas editorias “culturais” presas à essa mesma e perversa lógica corporativa que visa o lucro a qualquer preço.

-Qual o maior legado que a Vanguarda Paulista deixou para as futuras gerações?
-Apesar do termo Vanguarda Paulista ser usado como clichê para designar uma geração marcada exatamente por sua diversidade de propostas e matizes, e que aliou em seus trabalhos traços de ruptura estética e diálogo com a tradição, não creio ter sido bem esse o ponto que uniu os vários exponentes surgidos no mesmo cenário e suas respectivas contribuições. Mas, de qualquer forma, é possível sim identificar aqui e ali, na produção desses artistas, além do já alardeado experimentalismo (principalmente em Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção); novas possibilidades poéticas (Rumo, também o Itamar); a presença do canto falado (Arrigo); também da fala no canto (Rumo); um aproach com o teatro (Arrigo, Itamar, Premê, Língua de Trapo) - isso antes da Blitz usar vocalistas em sua mise-en-scène; o humor (Língua, Premê). Outro ponto importante dessa geração, à necessidade de uma maior liberdade de escolha em relação ao conteúdo e veiculação do produto industrial (capa, encarte, estratégias de divulgação sem o pagamento de jabaculê). Para as novas gerações consumidoras de música saberem (alguém se exclui dessa?): não foi o Lobão que criou a “Música Independente” no país do carnaval! Essa necessidade surgiu como prerrogativa à existência criativa dos emergentes compositores de então, em um momento onde a música brasileira de mercado e os espaços promocionais, e as gravadoras multinacionais que o detinham, se distanciavam de um sentido de renovação de nomes e linguagem.

Beleléu: marginal urbano entre marginalizados


Você acredita que este mesmo movimento teve o reconhecimento que merece por parte dos pesquisadores, críticos ou ouvintes?

Não! Ainda noto alguma resistência entre os historiadores em dimensionar suas contribuições – o viés do pensamento único e tropicalista ainda predomina. Mesmo o potencial de mercado dessa geração de criadores não atingiu o seu máximo, e como a internet é algo ainda não muito popularizado há esperança de que isso aconteça. Mas não creio que os trabalhos mais experimentais dessa época encontrassem outra ressonância de público. Reconhecimento crítico eles tiveram sim, mas com ressalvas: numa entrevista me lembro do Arrigo ter falado que nem os críticos que falavam bem de seu trabalho o ouviam... A bibliografia musical ainda é incipiente, se formos compará-la à amplitude e à diversidade da produção. Também pela oportuna atualidade de alguns desses trabalhos, é possível um novo ciclo de interesses. Pelo que foi divulgado, parece que toda obra do Itamar está para ser relançada em formato digital, numa mesma caixa. Oxalá esse tipo de iniciativa ajude a promover outros compositores, intérpretes e álbuns seminais dessa e de outras épocas. Isso seria um enorme feito à memória musical.

O cantor e compositor Itamar Assumpção teve sua arte ofuscada pela sua biografia atribulada e bastante sui generis. Até que ponto o vício de classificá-lo como um compositor dito marginal (como aconteceu com Jardes Macalé, Jorge Mautner e Luís Melodia), imposto pela indústria cultural, atrapalhou a melhor compreensão de seu trabalho?

Ele deu nova e impactante roupagem ao malandro clássico delineado nos sambas, com o personagem Beleléu, forjou-se marginal urbano entre marginalizados – ali, por opção, além, “sobrevivente”. Não por acaso, o título do seu primeiro trabalho, Beleléu, Leléu, Eu, gravado em 1980, desconstrói o nome do personagem, apontando sua agressiva modernidade e uma fratura evidente – o alter ego capaz de expiar as dores de nascer negro e pobre em um país mestiço onde o preconceito é velado até mesmo aos pés descalços do redentor. Após desconsertar a fisionomia da música negra daqui, Itamar enveredou por searas menos inóspitas mas não demasiadamente hospitaleiras – ou, como ele mesmo disse, na música homônima à canção tropicalista, Baby: “duvido que me chamem pra sentar naquela mesa, e a grande família já não é tão grande”. Apesar de não o terem convidado para o banquete dos escolhidos, não tem como, sua arte jamais passará em brancas nuvens por esse céu de cor indefinível, outrora mítico. Maldito, amaldiçoado, nego dito, a música de Itamar jamais será proscrita. Com alguns poréns – popular pelo ritmo e pela dicção, difícil pela ótica e pela órbita cafuza de sua musicalidade cheia de breques e silêncios.

Há resquícios na cena musical brasileira do que já vinha sendo desenvolvido por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção?

Não diria que há trabalhos comprometidos absolutamente com suas estéticas, demasiadamente autorais e intransferíveis, essa busca de originalidade deveria nortear todo o trabalho criativo, pena sabermos não ser assim a realidade da maioria... No trabalho da banda paulistana Dona Zica - onde atuam Anelis, filha de Itamar Assumpção, Iara Rennó, filha de Alzira Espíndola, que por sua vez foi parceira dele, e Gustavo Ruiz, filho de Luiz Chagas, guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar... - há um iminente parentesco com o trabalho do finado compositor paulista. Algo um pouco menos evidente no som do Nhocuné Soul, também de sampa, faz essa ponte. B Negão, rapper carioca, declarou-se muito ligado às tramas sonoras do Nego Dito. Já Arrigo, que mais recentemente tem se voltado à produção de música escrita, não deixou muitos herdeiros. A banda gaúcha Graforréia Xilarmônica, que mescla sonoridade da jovem guarda ao dodecafonismo, reconhece essa influência entre outras. Agora, é importante e urgente que se conheça o trabalho da Patife Band, do Paulo Barnabé, irmão do Arrigo, que mesmo sem ter uma ampla discografia, apenas dois LPs lançados em 20 anos, é o mais bem acabado exemplo da contundência estética do irmão mais conhecido. Segundo Arrigo, Paulinho, como é chamado, foi mentor do tipo de som que fez, nos anos 80, uma fusão entre a música popular urbana e a música erudita contemporânea. Em tempo, Paulo também foi parceiro de Itamar Assumpção desde Londrina, e integrante da primeira formação da banda Isca de Polícia.

-Quais seus planos para o futuro?
- Estou ainda divulgando meu livro, tramando um novo e bolando um projeto para levar finalmente às telas essa pesquisa que, como foi dito anteriormente, nasceu com esse propósito.

* O teatro Lira Paulistana, sediado num porão que comportava cerca de 200 pessoas, localizado no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, foi inaugurado em 1979. Até 1986, ano de seu fechamento, abrigou, além de memoráveis shows de Almir Sater, Tetê Espíndola e etc – também uma embrionária cena underground, onde figuraram nomes como Ultraje a Rigor e Titãs -, um selo de grande importância para a divulgação musical independente, lançando trabalhos de Itamar Assumpção, Rumo, Premeditando o Breque (Premê), Grupo Um, Língua de Trapo, entre muitos outros.

Quem estiver interessado em adquirir o exemplar de “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito” pode fazê-lo por meio do e-mail: nabocadobode@gmail.com

Toninho, o audaz



A conversa que segue é misto de sonho, realidade, duração permeada por palavras inesquecíveis, quiçá eternas. Ela é fruto do encontro de um repórter acanhado, brasileiro, 32 anos, diante de um dos totens sagrados da deusa música: o mineiríssimo cantor, compositor e arranjador Toninho Horta.

Na memória agitam-se ondas colossais – o gosto do mar de Minas vem à boca, trazendo ao cais da razão a data precisa daquele momento: sábado, 7 de maio de 2005. Nos acordes do violão de Toninho (tão absurdamente verde e amarelo) surgem sereias de canto casto e profano. O espírito de Aleijadinho nasce. Aquece.

Toninho esta à vontade. Veste uma camiseta larga, com motivos tropicais, contrastando com sua calça desbotada. Seu par de tênis parece saído da capa do primeiro álbum do amigo-irmão Lô Borges. Traz poeira de estradas e estrelas.

O compositor morde uma maça enquanto fala sobre a vida e a carreira. Ah, a memória...Sim...seus olhos faiscantes miram este escrevinhador, enquanto umas moçoilas se divertem à mesa de frios impecavelmente disposta no camarim.

Eis o registro daqueles fulgurantes momentos pré-show, rolado em Lavras, Minas Gerais, naquela exata data, bem abaixo da Linha do Equador. Caminhemos a pé ou de jipe, com ou sem nossas Dianas interiores, nos joguemos.


- Gostaria que você começasse falando de sua infância e adolescência.
- Nasci em Belo Horizonte em 1948. Desde criança eu ouvia música clássica. Minha mãe tocava modinhas mineiras no bandolim e meu pai no violão. Lembro daquelas destas de congado e de Folias de Reis de Minas Gerais. Eu sempre ouvir aqueles cantos barrocos que eram tocados.

- Quais foram as suas maiores influências musicais?
- Quando adolescente, comecei a ouvir jazz por influência do meu irmão mais velho, o Paulinho Horta, casado com a Gracinha Horta, presente neste show. Foi ele que “me colocou na roda” desta atividade profissional quando eu tinha 16 anos. Eu comecei a compor 13 anos de idade. Depois das primeiras composições fui para o Rio de Janeiro e lá participei de vários festivais da canção popular brasileira. Isto aconteceu junto de outros músicos como o grupo MPB 4e a cantora Joyce. No final dos anos 60, Alaíde Costa e Leny Andrade começaram a gravar músicas minhas. A partir daí, e ao longo destas mais de 30 anos me lancei como compositor e guitarrista.

- Este ano a cidade de Belo Horizonte está comemorado 40 anos do “Berimbau Jazz Clube”, um dos principais redutos da nata dos músicos mineiros, como Milton Nascimento, Nivaldo Ornelas, entre outros. Como foi, para você, participar de todos estes acontecimentos?
- Foi um acontecimento muito importante a existência do “Berimbau Jazz Clube”. Eu era na verdade o “mascote” dos músicos. Tinha 16 anos e não podia ficar lá dentro por causa da minha idade. Cheguei a entrar lá apenas uma vez e bem rapidamente. Mas sempre convivi com os músicos da geração de meu irmão que passaram por lá: o Nivaldo Ornelas, o Wagner Tiso e muitos outros. Todos faziam música para sobreviver e ganhar uma grana. Curtíamos muito jazz e compositores como Duke Ellington, Stan Getz, e cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. O grupo do bar tinha uma cultura densa e rica. Foi aí que adquiri o meu gosto pelo jazz e desenvolvi meu caminho harmônico e o jeito de tocar.

- Conte-nos um pouco sobre a música “Manoel, o audaz”. Como ela foi composta e o que ela simboliza em sua obra?
- O compositor Fernando Brant sempre foi um grande poeta. E para cada compositor que ele trabalhava ele escolhia temas e tinha uma característica literária muito própria. Eu sempre fui uma pessoa simples e ligada ao lado telúrico da vida.Por isso, ele sempre fez letras das minhas músicas com imagens do cotidiano. Por exemplo, “Diana”, era uma cachorra dele. Já “Falso Inglês”, era uma gringa que estava cantando em certa ocasião. Na verdade, ele fazia letras sem me perguntar e quando eles chegavam era sempre uma surpresa. “Manoel, o audaz” virou hino. Ela história de um jipe, cujo modelo é de 1951. Mas a música foi feita nos anos 70. Ele expressa toda a vontade de ser livre, justo e amar a natureza e as pessoas. Uma das poucas músicas que combinei com Brant como seria a letra foi na canção “Céu de Brasília”. Foi engraçado por que na mesma hora que mostrei a música a ele, logo disse: “Olha, eu nunca fui a Brasília. Como vou escrever esta letra?”. Depois ele escreveu uma letra e era como conhecesse a capital federal de cor e salteado. As melodias inspiraram os poetas e o Brant sempre teve uma sacação muito grande com o meu trabalho.

- O Museu do “Clube da esquina”, projeto iniciado pelos membros do grupo de músicos mineiros da década de 70, recém fundado na capital mineira, está cheio de projetos bastante expressivos, buscando resgatar a memória afetiva e musical dos mesmos. Gostaria de saber se você tem participado deste projeto e como o analisa?
Estou participando. Sou um dos membros fundadores do “Clube da Esquina”. Na verdade, este movimento musical não foi uma coisa programada. Ele foi um acontecimento. Depois de uma década que o primeiro disco saiu, em 1972, tanto o público como a imprensa, começaram a reconhecer que aquilo era um movimento musical. Isto aconteceu devido ao grande número de compositores e interpretes talentosos deste que é, sem sombra de dúvida, um disco histórico para a MPB (Música Popular Brasileira). Depois veio o disco “Clube da Esquina 2”, em 1978. Um site foi lançado recentemente e ele foi criado justamente para os membros se reencontrarem e para podermos criar outros projetos para passar as gerações futuras o legado que criamos, vivemos e acabamos dedicando para outras gerações.

- Vocês já chegaram a cogitar o lançamento do “Clube da Esquina 3”, com uma nova geração de músicos, cantores e compositores mineiros?
- Esta pergunta foi sempre levantada, mas o Milton Nascimento, “o carro-chefe do movimento”, já afirmou que o “Clube da Esquina 3”, pode ser considerado seu álbum “Anima”(1982). Acredito que ele não tem vontade ou interesse mais de reunir as pessoas daquela época. Varias vezes eu tentei reunir Wagner Tiso, Lô Borges, telo Borges,, Beto Guedes, Flávio Venturini, mas sempre faltava o “Bituca”. A gente respeita a vontade dele. Agora, quem sabe poderemos ter em breve o “Clube da Esquina 4”? a questão é ter oportunidade. A única coisa que posso afirmar é que estamos todos disponíveis para que isso aconteça. É só o “chefe” chamar. É preciso dizer que a nova geração de músicos mineiros, apesar do destaque nacional, não tem uma ligação como “Clube da Esquina”. A não ser Samuel Rosa, vocalista do “Skank”, que foi vizinho de Lô Borges no bairro de santa Tereza, em belo Horizonte. Minas Gerais produziu uma variada gama de estilos e cada uma terá sua praia.

- Minas Gerais, desde muito tempo, vem produzindo compositores c cantores de renome. Poderíamos citar Ari Barroso, o “Clube da esquina” e mais recentemente bandas pop como Skank e Jota Quest. O Estado parece ter produzido uma sonoridade própria, diferente, por exemplo, da Tropicália. A que você atribuiria isto?
- Acontece que o mineiro não faz tanto estardalhaço. Nós somos muito de vender o peixe e costumamos fazer as coisas em silêncio. E quando a coisa é vanglorizada e valorizada, é que as pessoas se tocam da importância daquilo. A gente nunca quis divulgar o “Clube da Esquina” como um grande movimento. Mesmo porque cada membro tinha sua própria carreira ou mesmo a viu despontar a partir do movimento. Eu considero o “Clube da Esquina” um movimento mais importante musicalmente do que a Tropicália. Ele foi mais revolucionário na densidade musical. Com toda a certeza ele é o movimento musical, mais importante da segunda metade do século XX no Brasil. Tínhamos criatividade melódica, harmônica e rítmica. Os padrões rítmicos eram infinitamente superiores aos trabalhos musicais da Tropicália, onde a musicalidade ficava a cargo de Rogério Duprat, que acabou colorindo os arranjos das músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mas a importante de estética, de mudanças de hábitos, afinal, foram eles que colocaram a guitarra MPB.

- Ao longo dos últimos anos você tem dirigido seu trabalho para um público selecionado. Sua obra tem ganhado, inclusive, fama internacional. Como você analisa o momento musical brasileiro? Há espaço para trabalhos como o seu?
- Sou muito valorizado no Brasil. Mas acontece é que se o grande público conhecesse o meu trabalho ele poderia comprar mais discos e irem aos shows. Meu trabalho e amplo: vai do pop, passa pela bossa nova, o forró, entre outros. Lá fora a receptividade é muito maior. Consegui criar uma escola em diversas partes do mundo. Estarei nos próximos dias em turnê pela Áustria, Espanha, Escandinava, Dinamarca e Suécia. Em junho, eu volto para a Europa onde irei participar de vários projetos.

- É difícil fazer música instrumental no Brasil?
- Sou um músico privilegiado. Estou sempre viajando para fora e gravando com outros músicos e, hoje, sou uma referência para as novas gerações. O que me alegra e muito.
Isto é que significa que eu venda milhões de discos e faça dezenas de shows anualmente. O Brasil tem espaços ótimos onde os músicos instrumentais podem atuar. Além disso, há muitos festivais de jazz, programas de rádios culturais e universitárias que tem interesse na nova geração de músicas instrumentais no país. A música mais bem feita e cuidada é aquela feita pelos instrumentistas. Os cantores dependem de boa formação dos músicos. Sem eles, a música brasileira vai ficar muito “mal na fita”. Ela vem enriquecer as técnicas e as versatilidades dos músicos. A MPB é considerada, hoje, a música mais rica do mundo. Apesar de ela não estar na mídia, ela continua substanciosa e poderá alimentar as futuras gerações.

- A quantas anda o projeto de lançar o “Livrão da Música Brasileira”?
- O livro é um projeto que eu desenvolvi há 20 anos. Eu consegui um patrocínio para terminar a pesquisa ainda neste semestre e espero que o livro seja publicado ainda este ano.
A obra apresenta cerca de 700 partituras dos compositores mais importantes dos últimos 130 anos. Ele trará verbetes, indicações de referências de gravações, entre outras coisas. É um trabalho muito desgastante, mas motivante e enriquecedor. Graças ao Governo do Estado de Minas Gerais, a Cemig (Companhia Elétrica de Minas Geraes), da Civita, do Fundo Nacional de Cultura, que estão dando toda a credibilidade para o projeto, creio que até o final deste ano a obra vai chegar às livrarias, bibliotecas e universidades do país.

Como é para você retornar ao interior de Minas Gerais, no caso, Lavras, cidade bem próxima de Três Pontas, um dos berços do “Clube da Esquina” e terra natal, por adoção, de “Bituca”?
Lavras é um lugar onde eu sempre quis tocar. Acho que o teatro Lane-Morton tem até muitos problemas, pois o palco é alto e o som costuma retornar muito. Mas apesar de não ter um som limpo e uma acústica legal, eu estou muito feliz de estar aqui. Lavras é uma cidade que tem muitas universidades, um pessoal bonito, jovem e com garra. Estar no interior de Minas Geraes é uma maravilha. Aqui é ode reabasteço minhas energias para voltar para os trabalhos internacionais.

- Quais sãos seus planos para o futuro?
- Pretendo lançar um DVD ainda este ano. O trabalho é fruto de um show que aconteceu no Sesi Minas no ano passado. Devo também lançar mais um CD inédito. Este ano eu também já produzi a turnê do novo show de George Benson no Brasil. Nos conhecemos recentemente e nos tornamos grandes amigos. George Benson é um grande e talentoso músico de jazz. Ele é uma cara altamente musical.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Os Cantos de Afrodite



Três femininos cantos dispersos na noite do Brasil. Vozes cálidas que cortam o vento da madrugada fria latino-americana. De tão lúcidas, podem chegar a assustar, encharcadas que estão de um sentimento doce, amoroso, levando-nos a um estado quase permanente de beleza. O sentimento benfazejo nasce ao ouvirmos a tríade de lançamentos que a gravadora Lua Discos disponibiliza no mercado fonográfico nacional. São eles “Voz & Piano” (Alaíde Costa & João Carlos Assis Brasil), “Faço no Tempo Soar Minha Sílaba” (Célia & Dino Baroni) e “Se É Pecado Sambar” (Mariana de Moraes).

Canto I


O que se procura reter entre os dedos (ou seria dos ouvidos?) é a magia de reencontrar a cantora e compositora Alaíde Costa em parceria com o já consagrado pianista João Carlos Assis Brasil. Encontro histórico da dupla idealizado pelo produtor José Milton.

“Voz & Piano” é intimismo lapidado, sem virtuosismos vocais ou instrumentais. Repertório impecável, escolhido a dedo. “Janelas Abertas” (Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Morares), “Essa Mulher” (Joyce/Ana Terra), “Amargura” (Radamés Gnattali/Aberto Ribeiro), mostram um tempo em suspensão. Aquele da delicadeza nacional perdida, ausente, em meio a mortos e feridos de nosso dia-a-dia.

No mundo dionisíaco da dupla, clássicos tantas vezes mumificados pelo tempo e versões pouco felizes são presenteados com um sopro de vida e leve e embriagada. É assim nas dolentes e emocionadas interpretações de “Nunca” (Lupicínio Rodrigues) ou “Estrada Branca” (Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes).

“Foi uma emoção grande e uma espontânea troca de idéias. O objetivo era gravar só canções de amor, sem a coisa de cortar os pulsos. Quando fomos fazer a primeira música, parecia que tínhamos ensaiado na véspera”, recorda Alaíde Costa sobre o fiel parceiro.

Canto II



Dobra-se uma esquina da canção nacional. A cantora Célia, passados mais de 35 anos de carreira, continua dando das suas, com a gana que lhe sempre conferida no momento de soltar a voz e os sentimentos que a permeiam.

Escoltada por Dino Baroni, ela chega fervendo neste seu “Faço no Tempo Soar Minha Sílaba”. O título (retirado de uma das mais notáveis canções pós-tropicalista de Mano Caetano), bastante original, ajuda a entender a escolha de um repertório que procura unir tempos e espaços distintos. A produção ficou a cargo do jornalista e pesquisador musical Thiago Marques Luiz.

Não? Vamos lá: “Serra da Boa Esperança” (Lamartine Babo), “Cabaré” (João Bosco e Aldir Blanc), “Mente ao Meu Coração” (F. Malfitano) e “Geraldinos e Arquibaldos” (Gonzaguinha). Números musicais que se desvelam no canto de uma intérprete experiente e em estado de graça, que brinca, espontânea, no terreno profícuo dos acordes variados e sucintos do violonista.

Quem também pinta na área com participações mais que especiais são Zélia Duncan (“Disritmia”), Dominguinhos (“Mãe, Eu Juro/ Sem Açúcar”), Lucinha Lins (“Quase”) e Beth carvalho (“Pressentimento”).

Canto III



Mariana de Moraes chega com tudo em “Se é Pecado Sambar” (Lua Music), seu primeiro CD solo lançado no Brasil. Ela ressurge depois de um longo período de hibernação. Seu último registro fonográfico aconteceu em 1997 ("Alegria Continua"), quando esteve ao lado de Zé Renato e Elton Medeiros.

Neta do compositor e poeta Vinicius de Moraes (1913–1980), a cantora tem no currículo duas décadas de atividade artística, que inclui, além da música, cinema, teatro e novelas. Mais recentemente, ela deixou os marmanjos embasbacados com sua aparição relâmpago (estou entre eles, ok?) no documentário sobre seu avô, “Vinícius”, de Miguel Faria Jr.

“Se é Pecado Sambar” foi lançado nos Estados Unidos em 2001 e no Japão, em 2003. A idéia partiu do arranjador, compositor e pianista Guilherme Vergueiro, que fez a proposta para a interpréte. Depois do convite aceito por ela, o projeto foi encampado por um selo norte-americano.

Mariana é acompanhada pelo carioca Carlinhos Sete Cordas nos violões e cordas. No repertório há espaço para o ecletismo. A cantora passeia por estandartes bossanovista e jazzísticos, como “Fotografia” (Tom Jobim) e “I Fall In Love Too Easily” (Kahn/Styne), além do sambinha “Agora é Cinza” (Bidê/Marçal), entre outras belezuras.

A meia-noite no jardim lupicínico de Aldir


Do mesmo catálogo da Lua Discos, vale conferir “Vida Noturna”, álbum do outsider carioca Aldir Blanc. Compositor-cronista-escritor-psicólogo-parceiro-amigo-irmão de João Bosco que vem iluminado com seu candeeiro de idéias a cultura brasileira nas últimas décadas.

Lembrando um mosaico de retratos perdidos numa noite suja, o álbum funciona como uma catarse, que eclode em pequenos tesouros da enluarada e dionisíaca lira do compositor. “Eu tenho num bolso/uma carta,/uma estúpida esponja/pó-de-arroz/e um retrato, meu e dela,/que vale muito mais/do que nos dois”, diz a letra da faixa-título. E estamos entendidos, não é mesmo?

Compositor de sanha criativa rara, capaz de transitar entre a alma feminina, o cotidiano rodriguiano e as situações cômicas e mambembes, ele nada de braçada neste seu segundo título lançado em 2005.

Aldir Blanc tem ainda a companhia de parceiros e músicos memoráveis, tais como Mauricio Tapajós, Cristóvão Bastos, Guingua, Moacir Luz, entre outros.

Meditações sobre o tempo



Nossa dica também vai para o mais novo álbum do cantor e compositor Zé Guilherme, “Tempo ao Tempo”, que traz regravações de Zeca Baleiro, Vitor Ramil, Péri, Carlos Careqa e Marcelo Quintanilha.

Cearense de Juazeiro do Norte e radicado em São Paulo desde 1982, ele vem se firmando como uma dos grandes artistas contemporâneos do País, ao unir repertório criterioso, voz precisa e refinada, interpretação marcante e forte presença de palco.

Segundo Zé Guilherme, falar do tempo, “é falar genuinamente do sentimento humano, denso e profundo, leve e epidérmico, divino e do mundo. É traduzir espiral e labirinto, nos quais habitamos e nos aprimoramos, a partir de distintos pontos de vista”.

O cantor é acompanhado pela cozinha sonora de Douglas Alonso (percussão), Estevan Sinkovitz (guitarra e violão de aço) e Luciano Barros (baixo). Samplers, arranjos e bateria ficam por conta de Serginho R.

Quem aparece para uma canja em “Caminhos do Coração”, típica “canção peito aberto” do moleque serelepe Gonzaguinha, é Vânia Abreu. “É tão bonito quando a gente entende/Que a gente é tanta gente onde que a gente vá/ E é tão bonito quando a gente sente/Que nunca está sozinho por mais que pense estar”. Explodem corações. Galáxias se abrem. Tudo agora é calmaria.