quarta-feira, 30 de maio de 2007

O trovador do sertão



As paisagens do sertão nordestino tão bem recriadas pelo compositor cearense Humberto Martins Teixeira (1915-1979) foram novamente redescobertas. Seus versos, seus temas, sua elegância matuta e brejeira novamente saem agora do limbo da nossa memória nacional.

De forma tímida – mas não menos ambiciosa, tudo começou em 2002, quando foi lançado um CD, “Doutor do Baião” (Biscoito Fino), contendo 18 de suas canções. No final do ano passado, deu-se o término das gravações do documentário sobre sua vida, “O homem que engarrafava nuvens”, realizado pelo cineasta Lírio Ferreira e atriz Denise Dummont.

Dando continuidade ao resgate de seu legado, chega às prateleiras das livrarias do país a luxuosa edição bilíngüe “Cancioneiro Humberto Teixeira” (Jobim Music/Good Ju Ju), trazendo o songbook, com 173 canções listadas de seu repertório, e uma biografia.

Idealizada por Ana Lontra Jobim e a mesma Denise Dummont, filha de Humberto Teixeira, a obra conta com as participações especialíssimas. Quem assina o prefácio é Tárik de Souza; a introdução fica a cargo de Sérgio Cabral; texto de Ricardo Cravo Albim; apresentação de Roberto Smith e supervisão musical de Paulo Jobim.

Gringo Cardia enfileira o time de craques com um seu projeto gráfico para lá de especial, dando efeitos pop e supercoloridos a fotos e documentos. O volume reúne ainda 41 obras escolhidas do autor, contendo partituras e arranjos elaborados pelo compositor mineiro Wagner Tiso.

Retirante das Letras

O nome de Humberto Teixeira traz com ele um dos eixos transformadores da musica popular brasileira na primeira metade do século XX. Sua carreira como compositor começou em 1934, dois anos depois de chegar ao Rio de Janeiro, cidade na qual veio tentar a sorte como tantos outros conterrâneos, fugindo da seca que assolava o chamado polígono da seca (Ceará, Paraíba, Piauí e Pernambuco).

Daí não parou mais, enfeitiçando, com suas poesia, as vozes daquele período, totalmente embriagadas pelo charme de suas composições. Ciro Monteiro (“Deu me perdoe”), Orlando Silva (“Só uma louca não vê”) e Francisco Carlos e Natalina (“Meu brotinho”) são alguns deles. Ao longo da carreira fez ainda sambas e valsas.

Advogado por profissão, Teixeira fez parte do restrito panteão de intelectuais de nosso cancioneiro popular, cujo altar era composto por Ari Barroso, Mario Lago, Custódio Mesquita, Braguinha, Orestes Barbosa e outros.

Foi ainda deputado federal pelo Ceará. Criou a Lei Humberto Teixeira para divulgar a arte brasileira no exterior, lutou pelo direitos autorais, tendo sido presidente da UBC (União Brasileira dos Compositores).

O velho Lua

O estouro popular de Humberto Teixeira começaria a se delinear a partir de 1945, quando o compositor, arranjador e instrumentista Lauro Maia, seu cunhado e também parceiro, o apresentaria a um certo Luís Gonzaga do Nascimento (1912-1989), sanfoneiro arretado, natural de Exu (PE).

Nasceria deste encontro o baião, gênero musical que anteciparia as duas futuras revoluções musicais e estéticas trazidas pela bossa nova (1958) e o tropicalismo (1967), este, inclusive, acabaria por também o absorver através do seu espírito oswaldiano pós-1922.

Quem explica é o próprio Doutor do Baião em depoimento registrado no livro. “Não inventei o baião. Jamais tive essa pretensão. Apenas estimulado pela presença forte de Luís, urbanizei e depois adaptei ao estilo citadino esse antigo ritmo, já conhecido e tradicional nas veredas de boa parte do Nordeste, tão velho como o sertão que lhe deu berço. O baião sempre existiu nas quebradas do sertão, sempre foi música do povo”, revela.

A palavra baião vem de baiano, como era chamada a dança popular nordestina. Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão, ela apareceu na discografia brasileira pela primeira vez no ano de 1920, quando José Luís Rodrigues Calazans, o Jararaca, gravou “Samba Nortista”, do pernambucano Luperce Miranda.

“Eu vou mostrar pra vocês”

Gonzaga está para Teixeira, assim como Aldir Blanc está pará João Bosco. É um daqueles casamentos musicais raros. Juntos, eles imortalizaram o gênero através de sucessos que ecoavam através daquele aparelhinho imprescindível em toda a sala que se prezasse no Brasil lindo e trigueiro daqueles anos 40 e 50: o rádio.

São desta época, os clássicos “Asa Branca”, “Baião”, “Assum Preto”, “Estrada do Canindé”, “Juazeiro”, “Légua Tirana”, “Lorota Boa”, “Mangaratiba”, “No Meu Pé de Serra”, “Paraíba”, “Qui Nem Jiló” e “Respeita Januário”, entre outras.

O ritmo viraria moda no mundo a partir de 1950, quando “Delicado”, de Waldir Azevedo, conquistou os Estados Unidos. Invadindo também o cinema, com Carmem Miranda interpretando “Baião”, em “Nancy goes to Rio” e a talentosa atriz italiana Silvana Mangano cantando “O baião de Ana”, no filme “Ana”, com direção de Alberto Lattuada.

Mas como tudo na vida tem um fim, em 1950, calejados pelas divergências com relação às entidades arrecadadoras de direito autoral no Brasil, a dupla se desfez, cada qual dando outros rumos às suas carreiras.

De Teixeira, poderiam se ouvir ainda, entre outras, “Kalu” (inspirada na musa Lila Lea Lemos - mãe de Denise), “Eu sou o Baião” (feita sob encomenda para a rainha do gênero Carmélia Alves) e a genial “Adeus, Maria Fulo”, parceria com o mestre Sivuca (1930-2006), ganhando uma nova releitura na voz dos quatro anjos do apocalipse, Os Mutantes, em 1968.

Palavras iluminadas pelo sol e a poesia

“Cancioneiro Humberto Teixeira” possibilita entrever as veredas de seu universo marcado pela diversidade musical. Manejando sua pena ao lado de Gonzagão, o compositor fez com que os olhos da nação se voltassem para a realidade e a cultura nordestina (comida, dança, música, vestuário etc). Inaugurando o momento em que a canção mergulha no país de forma profunda, trazendo consigo belezas rítmicas e sonoras.

Suas palavras carregadas de sol e poesia contribuíram definitivamente para que outros cantadores e compositores nordestinos, passados quase cinco décadas de sua estréia, aportassem no Sudeste trazendo consiga referenciais e estilos diversos. Vale lembrar de Elba Ramalho, Fagner, Alceu Valença, Vital Farias, Geraldo Azevedo, Amelinha, Ednardo, Zé Ramalho etc.

Com ele, o espaço físico da caatinga se adensa, serve de cenário para os seus achados poéticos, cujas metáforas, amparadas na coloquialidade da linguagem, emocionam.Vide “Asa Branca” (“Quando o verde dos teus óio/Se espaiá na plantação”) ou “Juazeiro” (Juazeiro, meu destino/Ta ligado junto ao teu.../No teu tronco tem dois nomes/ela mesmo é que escreveu”). Para ficarmos apenas com estas duas.

Auto-retrato

Certa ocasião, Humberto Teixeira, na tentativa de traduzir o que era o baião, fez constar um pequeno ensaio no boletim da União Brasileira de Compositores, cujo faximile é reproduzido nesta edição, no qual se lê:

“Uma sextilha dolente de Juvenal Galeano...Uma trova matuta de Leonardo Mota...Ouro do Sol..o fogo do sol...a ira do sol (...) O cheiro da terra molhada misturada ao cheiro do sertão...(...) Um romance de José Lins do Rego (...) A sonoridade triste da minha lira canhestra...As endechas sem métrica da minha musa capenga.
-Isso, tudo isso, é BAIÃO”

Tudo isso também é Humberto Teixeira, cujo legado musical e cultural, com toda certeza, continuará brilhando na constelação do imaginário afetivo de milhões de brasileiros.

Um comentário:

Unknown disse...

Boa noite.
Você poderia conceder uma cópia / foto do Boletim da União Brasileira dos Compositores a que alude nessa matéria?
Grato.