sexta-feira, 22 de junho de 2007

Veteranos na linha de frente



Acreditem: música não é pose ou condicionamento. Dentro dela há guerras. Dilúvios de rosas e espinhos. Daí a pergunta: é possível criar um produto açucaradamente acessível e com conteúdo para o grande público? A resposta é: sim.

Sei que a frase acima pode conter qualquer coisa de inocente ou pueril, mas é uma verdade. Pelo menos para um cara que ainda consome Cd´s (vixe, Maria!), que ouve, que respira música todos os dias. A prova dos nove são os lançamentos dos medalhões de Erasmo Carlos e Lobão.

“Erasmo Convida II” (Indie Records) e “Acústico MTV - Lobão” (Sony/BMG) chegaram às lojas recentemente. São registros de dois roqueiros veteranos de gerações distintas que preferiam subverter as fórmulas consagradas do sucesso fácil, apostando em forças criadoras charmosas, saneadoras de novas pulsões de vida, fazendo brilhar novamente repertórios saborosos.

Os amigos

No caso do “Tremendão”, ele volta com novas sacadas sonoras, mostrando parte do repertório criado a quatro mãos com o amigo e parceiro Roberto Carlos. Uma compilação de sucessos no qual o artista propõe duetos com feras do naipe de Milton Nascimento, Simone, Djavan e Chico Buarque, passando por Marisa Monte, Kid Abelha, até chegar em novos pimpolhos crescidos, como é o caso dos Los Hermanos.

Está é a segunda parte de uma longa história que começa em 1981, quando nosso cantor e compositor carioca, inebriado quem sabe por alguma iluminação divina, decidiu se enfurnar em um estúdio de sua gravadora na época, a então Philips, com uma plêiade de 12 nomes consagrados e estreantes, realizando um dos mais belos discos daquela década perdida, “Erasmo Convida ...”.

Erasmo propunha encontros para interpretações cheias de vibrações, que fariam qualquer mortal levitar. Bastaria lembrar de sua voz colada à de Gal Costa, mandando super bem no conhecido prefixo da dupla, “Detalhes” (1970). Valia tudo. Até mesmo ele e Tim Maia transformando “Além de Horizonte” (1974) num quase sambinha. Sem falar na comoção que é (re) ouvir Maria Bethânia com sua voz a encher de mais malícia erótica de “Cavalgada” (1977).

Retomando o fio da meada

Quase três décadas depois, Erasmo retoma o fio da meada que separa um projeto do outro, sem perder o viço, a verve roqueira, o entusiasmo latente que exala de seus trabalhos. Enquanto Mr. Roberto Carlos se perde em discos medianos ou mesmo em processos judiciais estúpidos, movidos contra uma honesta e séria história escrita sobre sua vida, a despeito de preservar a auto-imagem de mito que julga ter – seu parceiro desponta na frente. Pretende continuar a fazer uma nova canção que contenha algo de belo simplesmente. O que já não é pouco.

O ecletismo ganha espaço em “Erasmo Convida II”. Vide o time de arranjadores que compõem o novo projeto: Vitor Santos, Rildo Hora, Nivaldo Ornelas, Luis Cláudio Ramos, Dadi, Domenico e Kassin.

A bolachinha prateada começa a rodar acompanhada pelo balanço de Lulu Santos em “Coqueiro Verde” (1971). Lado B do repertório do artista, feita em homenagem a sua futura esposa, a letra vem carregada pela maresia do período. “Em frente ao coqueiro verde/Esperei uma eternidade/Já fumei um cigarro e meio/E Narinha não veio”.

Na mesma linhagem de seu repertorio menos conhecido chegam “Banda dos Contentes” (1976), com Skank, “Tema de não quero ver você triste” (1965), com Marisa Monte e “Pão de Açúcar” (Sugar Loaf) (1982). Ressalva-se ainda a memorável canja do grupo Los Hermanos, esbanjando talento na lírica e pesadona “Sábado Morto” (1972). Aqui descobrimos o motivo de Rodrigo Amarante ser Rodrigo Amarante.

Tem ainda Kid Abelha dando uma sutil roupagem para uma das letras mais lindas em nosso cancioneiro, a impactante “O Portão” (1974), sem falar na audaciosa e bem humorada versão de “Imoral, Ilegal ou Engorda” (1976), com Adriana Calcanhoto, e “Cama e Mesa”, que vira um samba maroto na voz de Zeca Pagodinho. Resta-nos relaxar e gozar.

Devorando chapeuzinho vermelho

Poucos artistas viveram ou espelharam tanta contradição como Lobão ao longo das últimas décadas na música nacional. Irrequieto, brigão, polêmico, avesso ao conformismo, fez das tripas coração para sempre ir até as últimas conseqüências por tudo àquilo que acreditou.

Depois de um homérico (oito anos!) bate-boca com as gravadoras, três Cd´s lançados de forma independente, “Noite” (1998) e “A Vida é Doce” (1999) e “Canções Dentro da Noite Escura” (2005), nosso roqueiro quase cinquentão chega agora com este “Acústico MTV”.

Produzido pelo experiente Carlos Eduardo Miranda, o álbum foi gravado em dezembro do ano passado no Novos Estúdios, na capital paulista. Os cenários trazem a assinatura de Zé Carratu. Gigantescas molduras em estilo clássico, mas sem qualquer imagem ou pintura, dialogam em forma e conteúdo com o trabalho.

Lobão apresenta um timaço de músicos para sua festinha particular: Edu Bologna e Luce (violões), Daniel (baixo), Roberto Pollo (teclados), Pedro Garcia (bateria) e Stephane San Juan (percussão).

Chutando a porta

Já nos primeiros acordes de “El Desdichado II”, por exemplo, é como se toda a crueza existencial de sua lira, tomasse de assalto o castelo do reino encantado e comportado da MTV. “Eu sou o tenebroso (...)/ o abandono, o inconsolado,/ o sol negro da melancolia (...) o exu, o anjo, o rei/ o samba-sem-canção/(...)”. Mas nada exemplifica mais do um estado de espírito que o verso: “Eu sou a contramão da contradição”. Puro colírio para os do público.

O velho lobo tira da cartola outros achados de seu universo paralelo: “A Vida é doce” (lindíssima!), Vou te levar” (baladona que estourou em FM’ s ditas “piratas” do País) e “Você e a noite escura”. Pipocam outros achados como “Quente” (resguardada pelo acompanhamento sutil de um quinteto de cordas) e “A gente vão se amar” (com a banda Cachorro Grande). No clima vale a pena ver de novo reaparecem “Bambino”, (do repertório dos Ronaldos, lembra?), e “O Mistério” (da fase Vimana).

Lobão está a vontade. Solta o vozeirão gritado, malandrão, carioquíssimo, uivando para o público chapado. Ele hipnotiza a platéia entre um hit e outro, mandando seu recado honestamente. “Me Chama”, “Por Tudo que For”, “Noite e Dia”, “Canos Silenciosos” “Blá..Blá..Blá..Eu Te Amo (Rádio Blá)” provam que sua música ficou melhor com o passar do tempo.

A versão arrasa-quarteirão de “Corações Psicodélicos” termina por coroar de louros a legitimada vocação pop de Lobão (“Ainda me lembro daquele beijo spank punk violento/Iluminando o céu cinzento, eu quero você inteira”). Que se cuidem as donzelas e carneirinhos de plantão, pois ele continua mais solto do que nunca.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Vozes de Minas


Já vai longe aquela histórica noite de 1967, quando o jovem compositor e cantor Milton Nascimento despontou para o Brasil e o mundo, soltando sua voz no II Festival Internacional da Canção, no Estádio Maracananzinho (RJ), para um público deslumbrado diante de tamanha originalidade.

O que pouca gente sabia era que a reboque, o gênio criado em Três Pontas trazia consigo uma leva de letristas e músicos originalíssimo, amigos e parceiros, que mudariam a cara da MPB nas décadas vindouras, vindo a desembocar naquilo que ficou conhecido como o Clube da Esquina.

Um registro valioso dos desdobramentos destes acontecimentos acaba de ganhar a forma de um livro. A façanha se deve ao jornalista, roteirista e documentarista Paulo Vilara, autor do recente “Palavras Musicais – letras, processo de criação, visão de mundo de quatro compositores brasileiros, Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes, Chico Amaral – Entrevistas” (editora do autor, 408 pág.).

Obra de fôlego que propõe uma viagem literária por meio de longas conversas, canções, imagens, poemas e discos que vasculham as gêneses de que são feitas as almas de cada um dos letristas retratados. Com sua força motriz, a narrativa desvenda mundos tão diversos quanto inusitados. Faz-se travessia. Palavra tão cara ao grupo.

Nossa reportagem bateu um papo-papo, através de e-mail, com Paulo Vilara, este mineiro na cidade de Caxambu, que desde o primeiro momento se mostrou generoso em suas palavras e gestos. Leia abaixo os principais trechos da conversa:

- O livro é resultado de nove anos de árdua pesquisa empreendida por você. Quais os motivos que o levaram a mergulhar neste universo tão rico e diverso que é a musicalidade mineira e nacional?
- Justamente essa riqueza de que você fala em sua pergunta. Em 2004 dirigi o documentário “Mil Sons Geniais”, que tratava da diversidade musical existente em Belo Horizonte. Vivo aqui desde a década de 1960 e vejo que há uma profusão enorme de talentos na cidade. Em todas as artes, não apenas na música. Aqui, a todo o momento os gênios cruzam conosco nas ruas. Estão próximos de nós, moram na casa da esquina ou no apartamento de cima. Os quatro compositores focados em meu livro são uma prova concreta disso.

-Quais as principais dificuldades para que o trabalho se concretizasse?
- Desde o primeiro momento, em 1998, quando tive a idéia, quis fazer um livro que fosse também um objeto de prazer para os olhos, com muitas imagens. Ou seja, a qualidade do projeto gráfico era uma necessidade imperativa. O que o tornaria – e tornou – um livro não muito barato para ser editado. Tem cerca de 400 imagens, em preto-e-branco e em cores. Primeiramente, isso exigiu uma criteriosa pesquisa iconográfica. Depois, elaborar projetos para conseguir patrocínio de empresas via leis de incentivo. Finalmente, obtidos os recursos (Cemig e MSA), contratar um artista gráfico capaz de executar a tarefa com a criatividade que o material levantado pedia. Neste sentido, Tavinho Bretas foi um parceiro fundamental: também músico – não profissional – amigo pessoal de Milton Nascimento e muito ligado à história do Clube da Esquina e ao movimento musical contemporâneo, não apenas deu conta do recado, como contribuiu com soluções da mais profunda inventividade. As páginas com reproduções de capas de discos são um bom exemplo da qualidade do trabalho dele.

- O Clube da Esquina sempre foi um acontecimento musical visto sempre sob uma ótica que valoriza letras, melodias e harmonias. No entanto, pouco valor é dado ao aspecto revolucionário dele, sobretudo nas letras das canções compostas no período da ditadura militar no Brasil. Para você, esta atitude contestatória do grupo consegue ser vista hoje com mais clareza?
- Tomando-se cuidado com o anacronismo, o tempo e a distância podem ser favoráveis à formulação de uma visão mais crítica e aprofundada dos acontecimentos. No caso de muitas das letras de canções do Clube da Esquina, eu trocaria o que você chama de “aspecto revolucionário” por atitude de resistência. E diria que as canções do Clube da Esquina merecem ser estudadas e analisadas sob vários pontos de vista. “Palavras Musicais” dá a sua contribuição. Mas há muito mais para ser feito e desvelado.

- O fato de Milton Nascimento permanecer no Brasil durante os anos de chumbo pode ter contribuído para criar um olhar de dentro para fora sobre o país, ao contrário de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e tantos outros que tiveram que se exilar?
- Durante o longo período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), a permanência de Milton, e de todos os demais integrantes do chamado Clube da Esquina, no país, contribuiu para dar força à resistência de muita gente. Naquela época, os shows de Milton Nascimento eram verdadeiras catarses coletivas. A respeito de canções compostas nesse período, com letras de Márcio Borges, Fernando Brant e Murilo Antunes, escrevi no livro que “muitas de suas letras de música eram como cartas abertas à população, denunciando e repudiando as barbaridades cometidas pelo governo militar e suas polícias, mas também alento a todos que lutavam para que o país retomasse os trilhos do respeito aos direitos humanos”.

- “Palavras Musicais” busca traduzir o universo pessoal e criador de quatro grandes personalidades da cultura brasileira. Depois desta longa travessia feita por você, qual a sua avaliação pessoal de cada uma delas?
- Se há um mérito no livro, creio ser este, o de expor as especificidades de cada um e mostrar as aproximações e as diferenças existentes entre Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral. Depois de ler as entrevistas, é possível ver que cada entrevistado tem uma face, uma voz, uma personalidade, uma escrita próprias.

- A leitura da obra nos permite perceber que muitas manifestações artísticas marcaram a formação dos quatro compositores, como a literatura e a música. No entanto, nada se compara ao cinema. Podemos afirmar que a 7ª Arte desempenhou papel fundamental sobre o trabalho do grupo?
- Sim, todos eles são cinéfilos de carteirinha e muito influenciados pelo cinema. Nos anos 1960, Márcio Borges chegou mesmo a escrever sobre cinema e até a escrever roteiros e a dirigir filmes de curta metragem. Murilo Antunes teve participação ativa em várias produções de cinema em Minas Gerais. Fernando Brant confessa que tinha e ainda tem vontade de dirigir filmes. Chico Amaral diz que quer escrever roteiros. Como também sou cinéfilo, escrevi sobre cinema, roteirizei e dirigi filmes, entre nós as conversas sobre cinema surgiram da maneira mais natural possível.

- Ao tirar as letras das canções do seu contexto musical e jogá-las no espaço em branco da página, você sugeriu um outro olhar sobre as composições. Foi uma maneira de aproximar a poesia da letra de música, valorizando as palavras em seu estado bruto?
- Exato. Essa é a proposta central do livro: valorizar a palavra, as letras das canções. Por isso mesmo é que selecionei quatro compositores de letras (embora Chico Amaral também seja músico, e um músico talentoso) para entrevistar.

- Se há algo unânime em todas os depoimentos, é o fato dos entrevistados confessarem ter sido influenciados pela obra de Caetano Veloso. Na sua opinião, até que ponto o Clube da Esquina e o Tropicalismo trazem algo em comum?
- Quem confessou essa influência foram Márcio Borges e Chico Amaral. Portanto, não há unanimidade. Até porque o que mais busquei foi a não-unanimidade. Quis mostrar que, embora ligados de alguma forma ao Clube da Esquina, eles se diferenciam em vários aspectos. Tanto o Tropicalismo quanto o Clube da Esquina foram antagônicos à ditadura militar. Muitos de nós perdemos parentes, amigos e conhecidos na luta contra aquele regime de exceção. Houve muita dor naquele momento da história do Brasil. Mas vejo diferenças entre os trabalhos dos dois grupos: enquanto o Tropicalismo carnavalizou a dor, o Clube da Esquina mergulhou fundo nela. Sem juízo de valor, são atitudes políticas e estilos musicais bastante diversos. Talvez, complementares: duas faces da mesma moeda.
“...e eu apenas sou um a mais, um a mais
a falar dessa dor, a nossa dor”
(trecho de “Milagre dos Peixes”, de Nascimento e Brant)

- Pode se dizer que a metáfora do trem (um dos símbolos da mineiridade), utilizada por você na obra, foi uma forma de seduzir o olhar do leitor?
- Sim. Não apenas de seduzir o olhar do leitor, mas de trazê-lo para dentro da viagem, como quem compra uma passagem de trem disposto a apreciar a paisagem da janela.

- Há uma proposta semiótica no livro, que busca unir imagem, som e palavras num mesmo fio narrativo. Como você conseguiu chegar a este resultado?
- Como disse antes, desde o início tive a intenção de fazer do Palavras Musicais não apenas um livro de entrevistas e de informações referenciais para estudantes e pesquisadores interessados na canção brasileira, mas ao mesmo tempo um objeto que fosse prazeroso ao olhar. Essa era a intenção, mas intenção é apenas um ponto de partida, nada além disso. É no próprio fazer que a obra vai sendo construída. Aos poucos ou aos saltos. Nesse processo de elaboração surgem muitas idéias, caminhos variados para unir os fios das diversas meadas. Trabalhar (no caso, escrever e editar um livro) é estar aberto às descobertas e revelações que o próprio material de pesquisa lhe proporciona. Essa disponibilidade para as novidades eu tive o tempo todo. Parece ter sido uma atitude acertada.

- O que esperar da música mineira para os próximos anos?
- A renovação das artes, em especial da música, é permanente, constante. Noite dessas assisti à premiação final do VII BDMG Instrumental. Vi e ouvi lá pelo menos uma dezena de jovens de grande inventividade, tanto como compositores quanto como intérpretes. Além desses talentos que surgem, os “antigos” continuam por aí, caminhando e compondo.

- Quais os seus novos projetos para o futuro?
- Projetos são intenções, pontos de partida. Idéias não faltam, o importante é dar início ao processo de realização delas. Vou fazer uma curta metragem de ficção este ano, 2007. E há anos escrevo, reescrevo e devolvo à gaveta dois livros de ficção. Até 2015, se o mundo ainda não tiver acabado, é possível que ambos ou pelo menos um deles me diga: estou pronto, chegou a hora de sair às ruas!


Maiores informações sobre o livro podem ser obtidas através do e-mail: palavrasmusicais@yahoo.com.br

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Pérolas aos poucos


Depois do estrondoso e ao mesmo tempo discreto sucesso do CD “Piano Voz” (MCD), lançado em 2005, o arranjador, compositor e multiinstrumentista André Mehmari e a cantora e compositora Ná Ozetti estão de volta. Eles, mais afinados do que nunca, chegam neste momento com novidades ao mercado fonográfico.

Saudado com entusiasmo tanto pela crítica quanto o público, o álbum – fruto de um projeto inicial bem sucedido da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ganhou recentemente um DVD, que traz a íntegra de todo o repertório do show mostrado pela dupla nas diversas capitais brasileiras.

Composta por pequenas delícias, como “Luz negra” (Nelson Cavaquinho/ Amâncio Cardoso), “A Ostra e o vento” (Chico Buarque de Hollanda), “Perolas aos Poucos” (Zé Miguel Wisnik/Paulo Neves), “Because” (Lennon/McCartney), “Rosa” (Pixinguinha/Otávio de Souza), a salada musical de ambos combinava delicadeza, emoção e virtuosismo da melhor qualidade.

O pacote, embalado no formato DPAC, cuja arte gráfica é assinada pelo talentoso e consagrado Gal Oppido, traz ainda um novo CD contendo quinze faixas inéditas de rara beleza. Puro supra-sumo de encantos sonoros.

Maturidade & Ousadia

André Mehmari explica a gênese do trabalho nascido de forma despretensiosa em 2004. “Desde os primeiros ensaios e encontros a gente já sentia uma afinidade musical muito grande. Uma vontade de unir vozes e intenções musicais. Percebemos que o trabalho seria registrado num CD”. O músico relata que ao longo de todo o percurso da dupla houve um aprofundamento com os arranjos e uma relação de intimidade com a concepção musical do projeto.

“Queríamos trazer o clima do álbum para o DVD. Muitos desses arranjos originais foram amadurecidos, retrabalhados, reorganizados durante a turnê nacional que a gente fez. Eles estão vivos e permanecerão vivos na medida em que nunca os tocamos da mesma forma. Eles se mostram novos para a gente”, explica.

Ná Ozetti reforça o pensamento do parceiro. “O trabalho está num momento mais maduro. O que a gente vê no vídeo é o resultado de pelo menos um ano de trabalho constante. Era um momento em que estavam nascendo novos arranjos e interpretações”. A fala da dupla foi registrada durante entrevistas contidas nos extras do disco.

Matemática de sentimentos

O DVD dá continuidade a sonoridade densa e introspectiva que marcou o show “Piano e Voz”. As imagens foram captadas durante quatro dias e quatros noites no Teatro Santa Cruz, em São Paulo, em abril do ano passado, com e sem a presença do público.

Há qualquer coisa melancolicamente tropical que atravessa as 18 canções, que emergem nas imagens protagonizadas pela dupla, que pode ser sentida na agonizante “Clube da esquina” (Milton Nascimento e Márcio Borges), em “Ciúme”, momento feliz de um Caetano Veloso inspiradíssimo ou ainda na memorável “Luz negra” (Nelson Cavaquinho/Amâncio Cardoso).

A escolha do repertório parece pinçada a dedo. Vale lembrar “Asturiana” (Manuel de Falla), “Copla de Ordeño” e Cuitelinho (Folclore recolhido por Paulo Vanzolini e Antonio Xandó). Está, inclusive, já eternizada por Nara Leão (1942-1989), mas que aqui, soa honesta e com naturalidade. Sem contar com a releitura ensolarada de “Suíte Gabriela”. Mais uma daquelas brejeirices musicais tão ao gosto do autor, Tom Jobim.

Enquadramentos, ângulos e iluminação privilegiam o momento intimista de André Mehmari e Ná Ozzetti em quase 1h 30 de puro êxtase singelo e atemporal. De quebra, making off e entrevistas.

Reforços

O mesmo acontece com o novo CD. Por manter a mesma integridade musical, seja nos arranjos ou no repertório, nada se perde, somando-se ao álbum anterior, em nível e qualidade. Basta deixar atentos os ouvidos e viajar.
Todas as canções foram gravadas em um estúdio montado sobre o palco do teatro, sem a presença do público, privilegiando um tempo próprio, interior, que desabrocha em beleza, forma e conteúdo.

A dupla recebe reforço de mais feras nas faixas “Eternamente” (André Mehmari/Rita Altério), “Sonho Além” ((André Mehmari/Luís Tatit) e “Pra dizer adeus” (Edu Lobo/ Torquato Neto). Elas atendem pelos nomes de Sérgio Reze (bateria) e Zé Alexandre Carvalho. De joelhos, nós agradecemos emocionados e enternecidos.

As histórias de um certo “Tião”


“Cadê o retorno, o retorno, por favor?!”. Eis o velho bordão de Sebastião Rodrigues Maia, o “Tião”, ou melhor, do nosso saudoso e tresloucado Tim Maia (1943-1998), quando estava no palco ou fora dele. Um sujeito para o qual vida e arte não se desassociavam em qualquer circunstância.

Pois é, este tijucano, amulatado e gordo, que tantas glórias proporcionou ao funk-soul-pop-brasileiro ganhou há pouco um retrato desprentesioso de sua vida e obra por meio do amigo e compositor paraguaio-brasiliero Juan Zénon Rolón, conhecido como Fábio, que acaba de lançar o livro “Até parece que foi um sonho – Meus 30 anos de amizade com Tim Maia” (Editora Matrix).

As 130 páginas do pequeno volume se presta a um pequeno mosaico de recortes da trajetória do artista para ler de uma sentada só. Em depoimento ao jornalista Acheu Pacheco, o autor, faz às vezes de cicerone, levando pelas mãos os leitores ao labirinto do minotauro Tim Maia. Resgatando momentos hilários e muitas vezes trágicos vividos pelo cantor e compositor de alma agridoce.

O mais do mesmo: brigas, confusões, drogas (pesadíssimas!), o encontro com Erasmo e Roberto Carlos, o exílio voluntário nos Estados Unidos, as prisões, as pelejas entre o céu e a terra, as histórias que inspiraram algumas de suas canções, os famosos bolos pregados em emissoras da TV e shows pelo País etc.

“Foi o primeiro cantor a bater de frente com as grandes gravadoras multinacionais, temido, respeitado por todas elas (...) Fundou uma gravadora e uma editora, e administrativa sua carreira sozinho. Era o terror dos técnicos de som, dos produtores e dos diretores artísticos. Sem dúvida, o maior criador de casos do meio artístico brasileiro de todos tempos”, resume Fábio.

A obra serve mais como um aperitivo para fãs e admiradores do velho “sindico”, já que o produtor Nelson Motta prepara o lançamento daquela que parece ser a biografia definitiva do artista. Sob o título provisório de “Vale Tudo – o som e a fúria de Tim Maia”, o novo livro, esperado para este segundo semestre, promete trazer novas revelações do autor de verdadeiros hinos da MPB, como “Não quero dinheiro (Só quero amar)”, “Música no ar” e “Réu Confesso”, dentro outras pepitas valiosas.

De qualquer forma, “Até parece que foi um sonho – Meus 30 anos de amizade com Tim Maia” introduz o leitor no universo muitas vezes em desencanto do artista. É um livro para se ler sorrindo ou mesmo de pileque.Claro, com um bom disco de “Tião” rodando ao fundo.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Com os pés na música


Não é fácil começar do zero. O cantor e compositor Zé Geraldo que o diga. Quase trinta anos depois de ter lançado seu álbum de estréia, Terceiro Mundo (CBS, 1979), ele quer tudo, tudo outra vez (alô, Belchior!).

Falando a partir da margem da grande indústria do disco, Zé lançou recentemente um brado de resistência (musical e existência): Com um Pé no Mato/Com um Pé no Rock, álbum em que registra inéditas e revisita clássicos de sua carreira, como "Cidadão", "Meiga Senhorita" e "Como Diria Dylan".

O trabalho traz ainda sua versão em DVD, fruto do show homônimo, gravado ao vivo na capital paulista, o primeiro da carreira do artista. A apresentação contou com o peso dos músicos de sua banda e também de um dos últimos bastiões da cena caipira musical do país, o compositor e cantor Renato Teixeira (alô, Romaria!).

O centro gravitacional da nova fase nasceu depois de ter parido seu CD “Tô Zerado”, lançado em 2004. O título revela um artista inquieto que já no aparente “fim” de sua caminhada, reitera sua profissão de fé novamente, para, com humildade e ironia, continuar resistindo aos assaltos do tempo cada vez mais predatórios de nossa selva cultural, política, social e futebolística - “Cê pensa que eu tô partindo/Eu vou começar do zero”, avisa Zé na contracapa.

Letras sociais e políticas continuam a ser centrifugadas no seu liquidificador de referências (Luiz Gonzaga, Bob Dylan, Raul Seixas e Tião Carreiro), fazendo aflorar rockões, toadas e letras nos ouvidos muitas vezes mofinos das novas gerações.

A entrevista que segue, foi feita em março do ano passado, quando Zé aportou Lavras (MG) para mais um show desta turnê. O Nada Será Como Antes a publica na íntegra.

O bate-papo, com esse senhor de cavanhaque e cabelos alvos como algodão, rolou no saguão do hotel onde ele estava hospedado, no centro da cidade, poucas horas antes de sua apresentação.

Naquele momento, enquanto grande parte das antenas de televisão da cidade e do país permaneciam falicamente apontadas para os reinos oficiais das falácias alienantes (aliciantes?) da Rede Globo de Televisão & Companhia (alô, Gugu Liberato e Fausto Silva!), o jovem-velho-artista se dispunha a falar sobre si, no meio de uma tarde quente, fria, morna, asperamente humana como sua obra.

Jogando milho aos pombos nas praças desses grotões terceiro-mundistas, o mineiro Zé Geraldo continua apostando suas fichas na possibilidade de tempos melhores. Vai daí, veio!

Como a música entrou na sua vida?
Quando eu vim para São Paulo, com dezoito anos de idade, eu já tinha escutado algumas músicas tocadas pelos meus tios. Cheguei à cidade pensando em jogar bola e acabei entrando em contato com outras músicas, como The Beatles, Bob Dylan, Luís Gonzaga e Ataulfo Alves.

Estes nomes foram uma referência para você?
A mais forte foi Bob Dylan, que ouvi pela primeira vez com meus tios na roça. Na hora, deu uma vontade também de ser o Tião Carreiro. Por isso, hoje, eu resumo a minha obra com um pé no mato e outro pé no rock.

Por que a escolha pelo pseudômino Zégê no início do seu trabalho?
Eu tinha aquele apelido e achava que deveria ser reconhecido por ele. Depois eu fui tocar na noite, nos bailes para aprender um pouco, desenvolver o meu lado de compositor e de cantor. Chegou um momento que aquele apelido não deveria ser colocado como meu nome artístico.

Duas de suas composições, "Rio Doce" e "Milho aos Pombos", foram feitos para dois festivais, um na Rede Globo de Televisão e outro no MPB Shell. Você sente falta desse segmento, visto que ele o ajudou a impulsionar sua carreira?
Não sinto falta desse tipo de evento na TV, acho que não tem mais razão de ser, pelo fato de ter muita ingerência das gravadoras. Agora, os festivais de música feitos no interior do país não possuem nenhuma interferência de empresas e são feitos por pessoas amadoras. São eventos fundamentais para a nossa cultura e nossa arte se renovar e fornecer novos valores.

Você teve duas músicas suas veiculadas em novelas da Rede Globo, Paraíso e Livre para Voar. Diz a letra de uma de suas composições recentes, "Tô Zerado," que você se sente feliz por não aparecer nos programas dominicais de Augusto Liberato, o “Gugu”, e no de Fausto Silva, o “Faustão”. Quando você afirma isso, não há um certo ressentimento, já que foi ajudado por esse tipo de mídia?
Eu não pedi para ninguém colocar a música na novela. Nunca fiz música encomendada para botar na televisão. É de praxe os produtores darem um tema para os compositores da “rodinha” musicarem. A minhas composições foram colocadas nas trilhas depois de gravadas. Agora, foi importante para mim? Claro que foi!(diz impaciente).

Houve de certa forma um saldo positivo desta exposição?
Sim, pois eu comecei a gravar com mais de trinta anos. Na época, as gravadoras diziam que minha música era muito séria. Eu comecei a ficar ressentido. Me achava um velho com essa idade. Acreditava que minha obra não tinha uma penetração no público mais jovem. Foi quando no meu quarto disco, minha música "Semente de Tudo", entrou na novela e trouxe esse público para o meu trabalho.

As coisas mudaram a partir deste instante?
Eu me desarmei. Costumava ir para os shows com barba por fazer e não me preocupava com minha aparência. Quando eu falo na letra que “sou feliz por não ter a ilusão de aparecer no Gugu e no Faustão” é porque eu cansei de bater na porta desses caras e não ser atendido. Tem uma hora que seu amor próprio fala mais alto: “Poxa cara, você é feliz. Tem tanta gente que gosta de você!”.

Quer dizer que você pode um dia aparecer nesses programas dominicais?
Vou numa boa. Eu criei mecanismos para ser feliz sem participar do grande bolo da música brasileira, que são esses programas dominicais. A cada três domingos aparece o mesmo cara. Eu não estou renegando o “sistema”, apenas não me dei bem com ele. Não cuspi no prato que eu comi.

As pequenas e médias gravadoras estão contribuindo para democratizar os espaços dos músicos e compositores? Fale um pouco sobre o seu selo, o Sol do Meio Dia.
Desde o meu sexto disco eu gravo com esse sistema. Criei uma editora que está no nome das minhas filhas. Isso é o caminho para a maioria dos artistas. A grandes gravadoras não existem mais e o jabá esta voltando de novo por meio delas. Não faço parte desse esquema e não tenho nada com isso. Sou independente mesmo com todas as minhas dificuldades. Graças Deus eu estou aqui, sonhando e realizando sonhos.

Você poderia apontar qual é o tipo de´público que acompnaha o seu trabalho?
Houve um período de grande predominância dos universitários. Hoje sinto que o público jovem muito importante dentro desse contexto. É um público que vai me renovando, me mostrando outras coisas. Quando você é fiel às pessoas, elas também são fiéis a você. Estou sempre na estrada rodeado de pessoas cantando as minhas coisas.

As letras de suas músicas têm uma temática social e política muita marcante. Como analisa a atuação do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva?
Sinto-me um pouco frustrado porque o grande líder que apoiei e segui durante esses anos todos não se mostrou “tão grande” como eu imaginava. Depois de você sofrer tanto pela vida afora e, em determinado ponto, vê esse sonho ser sonhado por muita gente ruir aos poucos é muito frustrante. Espero que outras gerações possam ser mais bem sucedidas do que a minha.

Fale-nos um pouco seu mais recente álbum, o Pé no Mato/Um Pé no Rock, que também foi registrado em DVD.
Eu fiz o DVD por não aparecer muito na mídia. Muitas pessoas não me conhecem. Nele procurei registrar as minhas influências. Minha música nasceu no mato e ganhou influências na cidade. Os cenários do show foram temáticos. O vídeo vai mostrar um pouco quem sou eu.

Como é retornar para Minas Gerais, seu berço natal?
Você não pode renegar o seu torrão. A gente vai atrás da nossa história pelo mundo afora, mas é importante a gente reconhecer os valores que temos na nossa terra. O Estado de MG é muito importante dentro do país, principalmente dentro da cultura brasileira: na música, no cinema e na literatura. Quando volto para cá, me sinto em casa. Adoro estar no palco para encontrar as pessoas e fazer o que mais gosto: cantar e tocar.