sexta-feira, 18 de maio de 2007

Alegre e cruel


A cabeleira simpática e grisalha do cantor e compositor baiano Caetano Veloso não esconde os 64 anos de idade. A despeito de uma crítica musical e comportamental cada vez mais egocêntrica no país, debaixo de seus hoje extintos caracóis (alô, Roberto Carlos!) caudalosas correntezas de poesia ainda continuam a fluir.

Depois de seu Foreign Sound (2004), álbum que continha 23 canções interpretadas em inglês e com orquestra, nosso camaleão tropicalista mais uma vez se transmutou, fazendo baixar uma outra e surpreendente pomba gíria no terreiro da cultura nacional.

Este atestado de saúde artística pode ser comprovado em Cê, seu mais recente CD, lançado em setembro do ano passado. Em vez da delicadeza sonora do arranjador Jaques Morelembaum, com quem trabalhou nos últimos 15 anos, desta vez o baiano preferiu imprimir outros rumos à sua carreira.

Por isso, Caetano Veloso chamou para si os músicos Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Gomes, que assim montaram uma cozinha básica, feita de guitarras, baixo, bateria e teclado. A produção ficou a cargo de Pedro Sá e seu filho Moreno Veloso. Já as 12 faixas são assinadas pelo compositor, um fato inédito, como revelou o próprio em entrevista na época.

O título, uma contração do pronome de tratamento você, foi escolhido, segundo ele, em razão de sua coloquialidade. “Havia algumas músicas em que a palavras ‘você’ aparecia, mas eu cantava ‘cê’. Daí, quando vi escrito, achei que ficava bacana”, explicou.

Líbelo anti-repressor

Cê foi saudado pela mídia com uma dos melhores trabalhos do compositor nos últimos anos, relembrando, em tese, outras pérolas de sua discografia, como Transa (1972), Jóia (1975), Uns (1983) e Velô (1984).

Mas nem por isso agradou a gregos e troianos. “Fui informado do CD de Caetano, que é mais rock, e, já sem ouvir, eu sou contra. Prefiro lembrar dele pelas coisas que ele fez, e não pelas coisas que ele pretende fazer para a mídia (...). Transformar rock’n roll em cultura e chamar de brasileira, me cansa a beleza”. A declaração, de um ressentido Dori Caimmy, dada em entrevista à época, mostra bem o panorama das coisas.

A partir dela, podemos traçar um paralelo interessante sobre as intenções do artista, que (clichê do clichê) nunca foram ou são para agradar o grande público e a crítica especializada. Cê é um disco de ruptura, mesmo que momentânea. As canções exalam sexo, tesão, amarguras, a passagem do tempo e uma certa desilusão quanto à modernidade.

O líbelo contra a passividade e a apatia dos sistemas corporativistas em todas as esferas sociais nasce através do som distorcido de guitarras e microfonias, representantes legítimas de um estado de espírito do compositor.

Nele, se mostram um letrista recém separado da esposa, Paula Lavigne, e provocador. “Tu é gênia, gata, edecetra/ Mas cê foi mesmo rata demais/ Meu grito inimigo é: Você foi mor [maior] rata comigo/ Você foi concreta e simplesmente”, desabafa ele em Rocks, sob a fúria sutil dos riff’s de guitarra.

O acerto de contas com o passado amoroso frustrado é proclamado outra vez na melancólica Não me arrependo, “Eu não me arrependo de você/ Cê não me devia maldizer/ Vi você crescer/ fiz você crescer/ Vi cê me fazer crescer também/ Pra além de mim”, sem com isso perder a ternura. É Caetano, como sempre, conciliando contrários.

A catarse sentimental ganha ainda mais intensidade na endiabrada Odeio. A canção é feita de imagens que se conjugam em movimento (“Veio um garoto do arraial do cabo/Belo como um serafim/Forte e feliz feito um deus, feito um diabo/Veio dizendo que sim/Só eu, velho, sou feio e ninguém”). São pequenos estilhaços que, colados ao refrão em forma de mantra lisérgico (“Odeio você, odeio você, odeio você, odeio”), ganham luz própria através dos acordes de um violão.

Sobram homenagens em Waly Salomão, referência ao amigo, poeta e agitador cultural morto em 2003, numa das mais densas letras de Cê. “Eu sigo aqui e sempre em frente/ Deixando minha errática marca de serpente/ Sem asa e sem veneno/ Sem plumas e sem raiva/ Suficiente”. O desnudamento de sua fragilidade, marca registrada do artista, mais uma vez triunfa sobre o lugar comum ao som de um tambor aparentemente fúnebre, com leves toques de guitarra.

Libidos poéticas

A temática sexual de Cê também é algo que se sobressai durante a audição. Seja no machismo divertido de Homem (“Só tenho inveja da longevidade/E dos orgasmos múltiplos) ou no erotismo escrachado de Outro (“Feliz e mau como um pau duro/acendendo-se no escuro/ Cascavel/Concentrada e afoita”).

Destaque para a deliciosa e jazzística Porquê? O lúdico Caetano brinca com seu refrão, “Estou-me a vir” (expressão lusitana para indicar o orgasmo), durante a faixa que tem duração de quase quatro minutos.

Os sons do mundo do pop rock e o ar adolescente, que se mostram presentes no novo disco, podem levar a nomes hoje em evidência, que vão desde Los Hermanos a The Strokes. Sem esquecer, evidentemente, a velha guarda: Bob Dylan, Roberto Carlos e Erasmo Carlos e Raul Seixas.

Racismo e preconceito

Outro aspecto importante de Cê é abordagem do problema da identidade étnica brasileira, que, de alguma forma ou de outra, sempre estiveram sempre presentes à obra do artista. Vide a áspera e bela Haiti (música de Gilberto Gil), por exemplo, lançada em 1992.

Assim, o rap que fecha o disco, O Herói, registra a saga de um cidadão negro, que, movido por desejos de semear o ódio racial, acaba por se descobrir um homem cordial. “Nasci num lugar que virou favela/Cresci num lugar que já era/ Mas cresci a vera/ Fiquei gigante , valente, inteligente/ Por um triz não sou bandido/Sempre quis o que desmente este país/Encardido”.

Desvelando ao longo da letra (“descobri cedo que o caminho/não era subir num pódio olímpico e sozinho/mas fomentar aqui o ódio racial/a separação nítida entre as raças”, as sandices de um pensamento ainda que aparentemente distante, bem próximo de nós.

O achado chega quase no fim, “durante a dança”, onde “depois do fim do medo e da esperança” (numa referência irônica às cotas raciais e ao governo de Luís Inácio Lula da Silva), ele se vê diante do espelho. “Eu sou o herói/ Só Deus e eu sabemos como dói”, constata na pele o personagem da canção.

Para alguns, Cê pode figurar apenas como mais um disco de Caetano Veloso, para outros, nem tanto. A densidade do trabalho inspira novos olhares que, com certeza, somente poderão ser intensificados na medida do tempo. Resta-nos, por hora, sorver e apreciar a obra do artista. O resto, a eternidade se encarregará de julgar.

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