quinta-feira, 24 de maio de 2007

Cartola invade as telas de cinema em grande estilo


Esqueça o que te disseram sobre “Homem Aranha 3” ou “Piratas do Caribe 3”. A bola da vez é mesmo “Cartola – Música Para os Olhos”, filme dos diretores Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, que chegou aos cinemas no último da 6 de abril. A produção ficou a cargo de Clélia Bessa e Paola Vieira, da Raccord Produções.

O filme tem a ousadia de ser simples, cronológico, sofisticado e poético. É um filme que se aproxima do seu principal objeto, o compositor e sambista, que, sem ser letrado, fez canções e versos dignos de um imortal. Cartola, um artista do subúrbio carioca cuja obra é uma ponte cultural que liga um país dividido socialmente, empresta a biografia para os diretores contarem, sobre o ângulo original, parte da história da Mangueira, do Rio de Janeiro e da nossa música do século passado.

Na construção desse discurso, os diretores refazem ambientes, captam depoimentos e costuram essas imagens com ficção, documentário e material jornalístico de arquivo. Os testemunhos partem de pessoas que conviveram com Cartola, além de críticos, historiadores, cantores, músicos e compositores.

As imagens de arquivos resgatam longas-metragens, reportagens e entrevistas nas quais o sambista e o samba são o foco. Os filmes escolhidos são, na sua maioria, musicais das chanchadas das décadas de 40 e 50 e o cinema novo. São utilizadas cenas que criam e recriam dentro do espírito poético da narrativa.

Visões em verde e rosa

Segundo Lírio Ferreira, a idéia de construir uma narrativa cinematográfica tendo Cartola como tema, surgiu em 1998, junto com o também cineasta Paulo Dantas, que acabou desistindo do projeto. Ele explica que Hilton Lacerda acabou topando a parada.

“O primeiro tratamento do filme propunha contar a trajetória cronológica do compositor. Evoluímos para um filme que, mais do que registrar fatos de uma época, quer captar o espírito desse período”, contextualiza.

Lírio acredita que o longa se propõe a fazer uma nova leitura sobre a história do sambista, por isso buscou fugir de um simples “olhar naturalista”.

Hilton Lacerda reitera esta percepção ao exemplificar o modo como a narrativa foi desenvolvida. “A gente não queria que o personagem pautasse a narrativa. A intenção seria mostrar uma parte da história do país, desde o inicio do Brasil República até a abertura política. Mas essa mensagem política acabou ficando subliminar”. Ele diz que um dos desafios propostos era elaborar um filme fragmentado que não fosse hermético e que tivesse uma linearidade.

“Cartola é um filme que fala com vários públicos. Uma pessoa com conhecimento de cinema terá percepção diferente da maioria. Mas o público em geral vai sair do cinema conhecendo a história do compositor”, conclui.

RG

Cartola, carioca do Catete, nasceu no em 11 de outubro de 1908, o mesmo ano em que morreu outro gênio da arte nacional, Machado de Assis. Depois de viver durante três anos em Laranjeiras, saiu da Zona Sul e foi morar na Mangueira aos 11 anos. O bairro classe média e o morro deram régua e compasso para os versos e as canções do compositor.

Desde menino, o sambista participava de festas de rua. Aprendeu a tocar cavaquinho com pai e se apresentava no rancho Arrepiados, em Laranjeiras, e nos desfiles do Dia de Reis. Até 15 anos, Cartola viveu com a família e freqüentou escolas de ensino clássicas. Com a morte da mãe, deixou as duas instituições e passou a ter lições de boemia.

O apelido Cartola de Angenor de Oliveira nasceu no canteiro de obra. Como pedreiro, o compositor usava sempre um chapéu para impedir que o cimento sujasse a cabeça. Longe da rotina de pó e da poeira, o pedreiro criava a base para uma das principais escolas de samba do país. Fundou em 1925, com seu amigo Carlos Cachaça, o Bloco dos Arengueiros. Era a semente da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, que surgiu em 28 de abril de 1928 da fusão desse e de outros blocos da região. O próprio Cartola escolheu o nome e as cores da agremiação.

A estréia da Verde e Rosa na avenida foi embalada pelo o primeiro samba com a assinatura de Angenor de Oliveira. Era “Chega de Demanda”, composto em 1928 e só gravado por Cartola em 1974, no LP “História das escolas de samba: Mangueira”. Em 1931, o nome do compositor chega em outros territórios. Na época, era comum o artista do asfalto subir o morro para comprar música. Assim fez Mário Reis, que, com um punhado de dinheiro, adquiriu os direitos de gravação de “Que Infeliz Sorte”. A voz de Reis não se adaptou ao samba de Cartola. Quem acabou gravando foi Francisco Alves, que se tornou freguês das composições do mangueirense.

A relação, porém, mudou e Cartola passou a ceder apenas os direitos sobre a vendagem de discos e manteve a autoria. Entre eles estão “Não faz, amor” (em parceria com Noel Rosa, em 1932), “Qual foi o mal que eu te fiz?” (1932) e “Divina Dama” (1933). Nesse período, as criações de Cartola ganharam outras vozes, como “Tenho um novo amor” (1932), gravado por Carmen Miranda, e “Na floresta”, interpretado pelo parceiro da composição, Sílvio Caldas.

Os sambas da Estação Primeira completavam a projeção além Mangueira. Com o primeiro, em parceria com Carlos Cachaça, “Pudesse meu ideal”, a escola foi campeã do desfile promovido pelo jornal “O Mundo Esportivo”. “Não quero mais” (com Carlos Cachaça e Zé da Zilda, de 1936) deu outro prêmio à agremiação. A música, depois gravada por Araci de Almeida (1937), ganhou, em 1973, nova interpretação e título de Paulinho da Viola, para “Não quero mais amar a ninguém”.

O início da década de 40 cristalizou o talento de Cartola entre a elite musical e população mais simples. Ao lado de Donga, Pixinguinha e João da Baiana, participou, em 1940, de gravações com o maestro Leopoldo Stokowski. O repertório de MPB deu origem a dois álbuns de quatro discos lançados nos EUA. No rádio, o compositor atuou como cantor, com músicas próprias e de outros autores populares. Naquele ano, criou, com Paulo da Portela, o programa “A Voz do Morro”, na Rádio Cruzeiro do Sul, no qual a dupla apresentava sambas inéditos de vários autores. Em 1941, formou o Conjunto Carioca, com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, com o qual participou de programas da Rádio Cosmos, em São Paulo.

Os anos seguintes foram de ostracismo para o sambista. Cartola desapareceu do ambiente musical e muitos viveram a ilusão da morte do poeta. Alguns compuseram sambas em sua homenagem. Mas em 1948, a Mangueira o manteve vivo com o samba-enredo “Vale do São Francisco” (de Cartola e Carlos Cachaça) e conquistou o campeonato daquele ano. Mas Cartola só foi redescoberto pela mídia em 1956, quando o cronista Sérgio Porto o reencontrou. Eram tempos difíceis e o compositor vivia de bicos. De dia, lavando carros em uma garagem de Ipanema e, à noite, trabalhando como vigia de edifícios. Sérgio abriu caminho para o compositor cantar na Rádio Mayrinck Veiga. Logo depois, conseguiu, com ajuda de Jota Efegê, um emprego no jornal “Diário Carioca”.

A década de 60 foi mais suave para o compositor. Já vivendo com Eusébia Silva do Nascimento, a Dona Zica, eles fizeram uma pequena “revolução” gastronômica e musical na cidade. Primeiro, o lar do casal se transformou em ponto de encontro de compositores. Depois, em 1964, a matriz do samba mudou de endereço para o restaurante Zicartola, na Rua da Carioca. A casa fez história com a cozinha comandada por Zica, que ajudava na inspiração de grandes sambistas do morro e de jovens compositores da geração pós bossa-nova.

Só na Terceira Idade, aos 66 anos, o mestre gravou seu primeiro LP, “Cartola”. O disco conquistou vários prêmios. Dois anos depois, lançou o segundo com o mesmo título do anterior. Naquele ano (1966), o cantor fez o seu primeiro show individual, acompanhado pelo Conjunto Galo Preto. Um sucesso de público que ficou em cartaz, no Teatro da Galeria, no Catete, por 4 meses.

O sambista ganhou destaque na TV em 1977: a Rede Globo exibiu um programa “Brasil Especial” dedicado a Cartola. A audiência era crescente na tela e no palco. Em setembro do mesmo ano, o sambista participou do Projeto Pixinguinha, acompanhado por João Nogueira. O espetáculo começou no Rio e a ótima bilheteria carioca levou o show para São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. No mês seguinte, lançou o terceiro disco-solo: “Cartola – Verde que te quero rosa”.
Aos 70 anos, Cartola deixou a Mangueira e foi viver na tranqüila Jacarepaguá de 1978, quando estreou o segundo show individual. O quarto LP (“Cartola – 70 anos”) chegou ao mercado em 1979. Nesse período foi diagnosticado um câncer no compositor. Cartola morreu vítima da doença, em 30 de novembro de 1980.

Os lançamentos seguem após a morte do sambista. A Funarte editou e lançou, em 1983, o livro “Cartola, os tempos idos”, de Marília T. Barboza da Silva e Arthur Oliveira Filho, e, em 1984, o LP “Cartola, entre amigos”. A Editora Globo pôs nas bancas, em 1997, o CD e o fascículo Cartola, na coleção “MPB Compositores” (n°12). Entre composições próprias e de parceiras, Cartola deixou mais de 500 obras.

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