Foi ele, só podia ser ele, o grande produtor Aloysio de Oliveira, quem preconizou certa vez a respeito de uma das mais importantes intérpretes da música nacional. “Existem poucos artistas que possuem a terceira dimensão. A terceira dimensão é uma força de personalidade que permite ao artista hipnotizar o público. Maysa tem essa força”. A frase, eternizada na contracapa daquele antológico álbum do mito, gravado em 1964, hoje parece soar como mais um lugar comum.
No entanto, as aparências enganam. Maysa (1936-1977), cantora e compositora carioca, responsável pela criação de verdadeiros hinos da dor-de-cotovelo, tais como “Ouça” e “Meu mundo caiu”, resiste além dos rótulos. São muitas as suas faces. Doce e amarga. Áspera e suave. Mutante. Visceralmente única e eterna.
Todas elas se enredam em “Maysa - Só numa multidão de amores” (Editora Globo), biografia escrita pelo jornalista Lira Neto, que procurou, de forma inédita, aproximar os leitores da complexa e escancarada trajetória da mulher que marcou com seu talento e personalidade pelo menos três décadas da canção e da sociedade brasileira.
Uma história de rotas transversais que se entrecruzam tanto por inferninhos escuros, enuviados pela fumaça de cigarros e doses cavalares de whisk e almas perdidas, quanto pela pré-história de uma mídia cada vez mais sedenta e voraz por escândalos e manchetes sensacionalistas. Paralelas que, entre outras, vão dar em alucinantes e emocionados momentos musicais, criadores, etílicos e sentimentais protagonizados por Maysa.
Na construção de seu livro, Lira Neto partiu de pesquisas em arquivos familiares, entrevistas com cerca de 200 pessoas, entre parentes, amigos, ex-namorados, músicos e produtores, para chegar ao resultado final de seu trabalho. Empreitada de fôlego que levou o jornalista a ter acesso aos diários íntimos de Maysa, graças à generosidade do filho da cantora, o diretor de cinema e televisão, Jayme Monjardim.
De sua casa em São Paulo, ele nos concedeu uma entrevista exclusiva por e-mail na semana passada. Uma conversa agradável repleta de verve, conteúdo e beleza. Dessas que deixam a gente com o coração na mão de tanta alegria, como se ouvíssemos o canto estelar da musa intrépida. Divirtam-se!
- Como surgiu a idéia de escrever o livro?
-Todo biógrafo sonha em escrever um livro sobre um personagem como Maysa: alguém que viveu de modo intenso, que mergulhou na vida sem rede de proteção. Assim, biografar Maysa era um sonho antigo. Contudo, sabia que vários colegas jornalistas já haviam tentado – sem sucesso - abordar seu único filho, o diretor de cinema e televisão Jayme Monjardim, para ter acesso aos "baús" da cantora e compositora. Tive, felizmente, mais sorte. Um amigo em comum, o escritor Fernando Morais, fez a mediação entre nós e, assim, Jayme concordou em confiar-me o precioso acervo familiar.
-A narrativa se inicia com uma linguagem alucinante, reconstituindo a segunda tentativa frustrada de suicídio de Maysa. Foi uma forma de pegar o leitor pelo colarinho e colocá-lo diante da biografada?
-Um bom livro tem que fisgar o leitor desde a primeira linha. Em vez de começar de forma burocrática, com algo do tipo "Fulano de Tal nasceu na cidade x, no dia y de dezembro de mil novecentos e não sei quanto", é preciso transportar os leitores imediatamente para dentro de uma cena, na qual se apresente o personagem de forma atraente e carregada de impacto. Para tanto, no caso de uma biografia, isso só é possível por meio de uma pesquisa apurada, detalhista. O acesso aos diários de Maysa foi fundamental para isso.
- Maysa desenvolveu uma relação complexa com a imprensa e seu público, misturando momentos de atração e repulsa. Para você, ela pode ser um dos expoentes deste fenômeno tão conhecido no mundo contemporâneo, quando o artista passa a ser utilizado pela mídia e vice-versa?
- Maysa foi, talvez, a primeira artista brasileira a ser alvo e artífice deste fenômeno tão contemporâneo que é a construção midiática de uma celebridade. Nenhuma outra personalidade do mundo artístico nacional havia, até então, tido a vida mais devassada pela imprensa do que ela. Ao mesmo tempo, ninguém soube tirar maior proveito disso do que a própria Maysa. Tudo que fazia ou dizia virava notícia. Tinha um talento extraordinário, uma voz singular, mas muito de seu sucesso advinha também de sua capacidade de gerar fatos para o apetite dos jornalistas à caça de escândalos e fofocas. Ela tinha absoluta consciência disso. Tanto que guardou cada linha que se publicou sobre ela – falassem bem ou falassem mal - ao longo de sua carreira.
-Você teve acesso irrestrito aos diários íntimos da cantora e compositora. Como conseguiu esta façanha? Houve alguma restrição por parte de seus familiares?
- Nesse aspecto, tive o cenário ideal para um biógrafo: acesso total ao acervo da família e, ao mesmo tempo, liberdade completa para escrever sobre tudo aquilo que eu apurasse durante a pesquisa. Desde o início, sabia que não faria sentido nenhum fazer uma biografia em que Maysa fosse retratada de forma rósea e idealizada. O livro tinha a obrigação de ser fiel ao mesmo espírito de liberdade que norteou a existência de uma pessoa transgressora como Maysa.
- Em alguns momentos temos a impressão de que Maysa sabia perfeitamente que entraria para a história da MPB, não só pelo talento nato, mas pela sua vida tresloucada, que andava junto com sua arte. A construção do mito em torno dela parece moldada com o cuidado de um detalhista. Concorda com esta afirmativa?
- Maysa tinha um inegável senso de posteridade. O fato de ter escrito diários e ter guardado uma montanha de recortes de jornais e revistas demonstra isso com clareza. Mas ela não fazia disso – o que você chama de "construção do mito" - algo tão deliberado assim. Ela não era, de modo algum, uma pessoa racional e calculista. Ao contrário: era absolutamente espontânea, intuitiva. O que ela tinha de diferente era uma inteligência aguda, uma sensibilidade muito acima da média, uma certeza de que, além de excelente cantora, era também uma mulher muito à frente de sua época. Mas não vivia de forma tresloucada para moldar uma imagem pública baseada na transgressão. Longe disso. Na verdade, ela era a mais perfeita tradução dessa própria transgressão. Nela, nada era forçado, artificial, fabricado. Apenas queria viver e cantar aquilo que acreditava, a despeito de sempre ter pago um preço alto demais por isso.
- Na orelha do volume, Ruy Castro escreveu uma verdade inconteste, a de que Maysa, a despeito de sua luta pela felicidade e seu talento, foi vítima de inimigos invencíveis, como o preconceito, a ignorância e a fatalidade. De alguma forma, eles continuam a fazer vítimas dentro e fora da música?
- Infelizmente, não vejo mais tanta gente, no cenário artístico brasileiro, que encarne a mesma verdade e a mesma autenticidade que eram tão típicas de Maysa. Hoje vivemos o império do politicamente correto, a síndrome do bom-mocismo. É uma era de celebridades instantâneas e plastificadas, de talentos pasteurizados. Almas radicais como Maysa são cada vez mais raras.
- Nesse aspecto, tive o cenário ideal para um biógrafo: acesso total ao acervo da família e, ao mesmo tempo, liberdade completa para escrever sobre tudo aquilo que eu apurasse durante a pesquisa. Desde o início, sabia que não faria sentido nenhum fazer uma biografia em que Maysa fosse retratada de forma rósea e idealizada. O livro tinha a obrigação de ser fiel ao mesmo espírito de liberdade que norteou a existência de uma pessoa transgressora como Maysa.
- Em alguns momentos temos a impressão de que Maysa sabia perfeitamente que entraria para a história da MPB, não só pelo talento nato, mas pela sua vida tresloucada, que andava junto com sua arte. A construção do mito em torno dela parece moldada com o cuidado de um detalhista. Concorda com esta afirmativa?
- Maysa tinha um inegável senso de posteridade. O fato de ter escrito diários e ter guardado uma montanha de recortes de jornais e revistas demonstra isso com clareza. Mas ela não fazia disso – o que você chama de "construção do mito" - algo tão deliberado assim. Ela não era, de modo algum, uma pessoa racional e calculista. Ao contrário: era absolutamente espontânea, intuitiva. O que ela tinha de diferente era uma inteligência aguda, uma sensibilidade muito acima da média, uma certeza de que, além de excelente cantora, era também uma mulher muito à frente de sua época. Mas não vivia de forma tresloucada para moldar uma imagem pública baseada na transgressão. Longe disso. Na verdade, ela era a mais perfeita tradução dessa própria transgressão. Nela, nada era forçado, artificial, fabricado. Apenas queria viver e cantar aquilo que acreditava, a despeito de sempre ter pago um preço alto demais por isso.
- Na orelha do volume, Ruy Castro escreveu uma verdade inconteste, a de que Maysa, a despeito de sua luta pela felicidade e seu talento, foi vítima de inimigos invencíveis, como o preconceito, a ignorância e a fatalidade. De alguma forma, eles continuam a fazer vítimas dentro e fora da música?
- Infelizmente, não vejo mais tanta gente, no cenário artístico brasileiro, que encarne a mesma verdade e a mesma autenticidade que eram tão típicas de Maysa. Hoje vivemos o império do politicamente correto, a síndrome do bom-mocismo. É uma era de celebridades instantâneas e plastificadas, de talentos pasteurizados. Almas radicais como Maysa são cada vez mais raras.
- Qual tem sido a resposta do público diante do trabalho?
- Felizmente, a melhor possível. Dois meses após o lançamento, já foram feitas quatro tiragens do livro. Um sinal inequívoco de que Maysa – tanto em sua música quanto em sua atitude - continua atualíssima.
- A proibição judicial da comercialização da biografia "Roberto Carlos em Detalhes", do jornalista Paulo César de Araújo, reacendeu o debate em torno do direito de expressão no Brasil. Qual é o seu posicionamento diante deste caso?
- O caso da proibição da biografia de Roberto Carlos significa um atroz obscurantismo. Sou radicalmente contra tirar livros de circulação para transformá-los em papel reciclado. Se Roberto se ofendeu com algo que por acaso leu, que processasse o autor. Ele tinha esse direito. Mas retirar os exemplares das prateleiras das livrarias é uma espécie ostensiva de censura. Mas o que mais temo nessa história toda é o efeito que o episódio possa vir a produzir no mercado editorial. Pior do que a censura institucionalizada é a autocensura.
- Você poderia adiantar quais são os seus planos para o futuro?
Tenho alguns novos projetos na fila, mas prefiro não revelá-los, por enquanto. Primeiro quero conseguir acesso a documentos exclusivos, que irão alimentar meu próximo livro. Nos próximos meses, direi do que se trata. Mas ainda é segredo.
- Felizmente, a melhor possível. Dois meses após o lançamento, já foram feitas quatro tiragens do livro. Um sinal inequívoco de que Maysa – tanto em sua música quanto em sua atitude - continua atualíssima.
- A proibição judicial da comercialização da biografia "Roberto Carlos em Detalhes", do jornalista Paulo César de Araújo, reacendeu o debate em torno do direito de expressão no Brasil. Qual é o seu posicionamento diante deste caso?
- O caso da proibição da biografia de Roberto Carlos significa um atroz obscurantismo. Sou radicalmente contra tirar livros de circulação para transformá-los em papel reciclado. Se Roberto se ofendeu com algo que por acaso leu, que processasse o autor. Ele tinha esse direito. Mas retirar os exemplares das prateleiras das livrarias é uma espécie ostensiva de censura. Mas o que mais temo nessa história toda é o efeito que o episódio possa vir a produzir no mercado editorial. Pior do que a censura institucionalizada é a autocensura.
- Você poderia adiantar quais são os seus planos para o futuro?
Tenho alguns novos projetos na fila, mas prefiro não revelá-los, por enquanto. Primeiro quero conseguir acesso a documentos exclusivos, que irão alimentar meu próximo livro. Nos próximos meses, direi do que se trata. Mas ainda é segredo.