sábado, 25 de agosto de 2007

Nas Quebradas de Nêgo Dito e Cia.


América Latina. Brasil. Estamos em Londrina, capital paranaense, na noite do dia 9 de março de 1973. As cortinas do Teatro Filadélfia se abrem para a estréia do show “Na Boca do Bode”, promovido por um bando de artistas locais talentosos, sufocados pelo regime militar vigente, que tentavam (re) fazer o novo, lançando seus dados em busca do acaso.

Foi pegando carona neste aparente insosso acontecimento, que flutuava fora de nosso eixão surrado Rio-Sampa, que Fabio Henriques Giorgio, paulistano, apaixonado por música, acabou por descobrir todo o embrião daquilo que alguns anos depois viria a ficar conhecido como a Vanguarda Paulista, cena musical cuja originalidade e ousadia fez arrepiar tanto o underground como o maistrean brasileiros.

Trocando em miúdos: a descoberta de um coro talentoso de músicos, cantores e compositores que unia experimentalismo e tradição. A pororoca estava formada. Itamar Assumpção, vulgo Nêgo Dito, Arrigo Barnabé, os grupos Rumo, Premê e Língua de Trapo, entre outros, plantavam suas bandeirolas na música (im) popular brasileira.

Estas e outras histórias estão contidas em “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito”, livro lançado por Fabio Henrique em 2006, através de recursos próprios e do PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) da Secretária Municipal de Cultura de Londrina (PR) e SERCOMTEL.

Na longa e substanciosa entrevista abaixo, Fabio Henriques descreve a construção de sua narrativa, analisa o legado musical e conceitual do movimento, a condição de marginal de Beleléu e revela nomes pouco ou nada conhecidos que estão fazendo a história da musica popular urbana e cosmopolita no Brasil de hoje. Divirtam-se.
- Como nasceu a idéia de escrever “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito”?
- Em meados de 2000, toca o telefone de casa e uma voz conhecida, antes que eu pudesse sequer identificá-la, me aborda com um tom de urgência: - Você topa pesquisar sobre o Lira Paulistana* comigo? Não recuei ante ao abrupto convite, mas antes que engasgasse expirei o ar em resposta: - Hã?! Claro, não foram absolutamente essa a pergunta, a resposta e os desdobramentos... O fato é que alguns meses depois, eu e meu amigo, o poeta e historiador Marcelo Montenegro, iniciávamos a pesquisa, que tomaria mais de três anos de investimentos numa obstinada busca, que renderia ainda várias interrupções e retomadas. Inevitáveis desvios de rota acabaram motivando a saída do Marcelo da empreitada – pelo menos ele aceitou o convite para escrever a apresentação do livro, afinal, foi graças à sua “proposta indecente” que eu me meti nessa enrascada... Na verdade, nascido quase assim, o projeto se transformou demais no intercurso dos acontecimentos. Primeiro, mudou-se o objeto. Depois, o suporte. Explico: ao descobrir a existência de um show coletivo que reuniu pela primeira vez num mesmo palco dois dos principais protagonistas daquilo que ficou conhecido como “Vanguarda Paulista” ou “Geração Lira Paulistana”, os compositores Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, percebi ali algo singular, fundamental para a compreensão das estéticas e trajetórias deles e de seus contemporâneos. Conclusão: a pesquisa acabou revelando que um dos embriões do cenário cultural paulista do final da ditadura - que legitimou a intensa e inventiva produção musical sediada na cidade de São Paulo no início dos anos 80 - teria sido esse show coletivo paranaense de nome tão singelo: “Na BOCA do BODE”. Da idéia dessa pesquisa gerar um vídeo-documentário, materializou-se esse livro - um documento histórico que visa perpetuar e esclarecer alguns fatos recentes, a erupção de um dos momentos mais criativos e significativos da música brasileira pós-tropicalismo.

- Gostaria que você detalhasse como se deu à pesquisa de campo para chegar ao resultado final deste trabalho. Pintou muitas dificuldades ao longo de todo processo de composição?
- Basicamente, foi através de entrevistas, coletas de depoimentos - fiz mais de 50 entrevistas formais e informais, meu livro tem muito de história oral -, e da análise de documentos e jornais de época. O maior complicador foi cruzar as diferentes versões dos fatos relevantes, triar material, extrair alguma verdade significativa ou uma narrativa ao menos desse exercício. Esse entendimento é crucial para que novos pesquisadores e interessados em empreender semelhante aventura não se iludam à respeito dessa atividade e seus meneios. Quero dizer, é impressionante como quando elaboramos um projeto para tal ou qual finalidade não temos a menor idéia do tipo de problemas que enfrentaremos no transcurso dessa realização. Ou seja, cumprir um cronograma de trabalho sem atrasos consideráveis é tarefa hercúlea, quase impossível numa pesquisa com essa amplitude.

A seara fértil das terras vermelhas de Londrina


-O que aparece nas entrelinhas da narrativa é uma cidade de Londrina em plena efervescência cultural, repleta de grandes festivais de música popular, manifestações de poesia, artes plásticas etc. Você acredita que este tipo de experiência pode ser vivenciada nos dias de hoje em outras regiões brasileiras?

-Com toda certeza que se pode ter em início de século, àquela Londrina do final da década de 1960 foi algo sui generis. Do espírito empreendedor que ali brotou ao caráter de resistência dos festivais, que contemplaram todas as áreas artísticas, um legado de expressivas possibilidades desabrochou – literalmente falando –, seus desdobramentos puderam ser percebidos na música, com a Patife Band; na poesia, com Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção e Marcos Losnak (editores da imprescindível revista Coyote); na dramaturgia, com Mário Bortolotto, Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes. No entanto, hoje, apesar dos descaminhos de nossas políticas públicas, que deixou imensos vazios nas demandas populares por cultura e conhecimento, é amplamente possível acontecer algo parecido mas não saberia com alguma precisão dizer como. É sabido que os ideais coletivos de enunciação foram abortados em detrimento da lógica do sucesso individual, do carreirismo, imposição do capitalismo e suas artimanhas, do mercado de trabalho e sua mortalha. Basta nossas antenas entorpecidas pelo medo, poluição e pela publicidade se re-ligarem e veremos toda a produção de bens imateriais que pipoca da Amazônia ao Rio Grande do Sul, aí sim teremos idéia de como esse fenômeno se renova, mesmo não ocupando o grande mercado tão alardeado pelos teóricos da terceira via e pelas editorias “culturais” presas à essa mesma e perversa lógica corporativa que visa o lucro a qualquer preço.

-Qual o maior legado que a Vanguarda Paulista deixou para as futuras gerações?
-Apesar do termo Vanguarda Paulista ser usado como clichê para designar uma geração marcada exatamente por sua diversidade de propostas e matizes, e que aliou em seus trabalhos traços de ruptura estética e diálogo com a tradição, não creio ter sido bem esse o ponto que uniu os vários exponentes surgidos no mesmo cenário e suas respectivas contribuições. Mas, de qualquer forma, é possível sim identificar aqui e ali, na produção desses artistas, além do já alardeado experimentalismo (principalmente em Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção); novas possibilidades poéticas (Rumo, também o Itamar); a presença do canto falado (Arrigo); também da fala no canto (Rumo); um aproach com o teatro (Arrigo, Itamar, Premê, Língua de Trapo) - isso antes da Blitz usar vocalistas em sua mise-en-scène; o humor (Língua, Premê). Outro ponto importante dessa geração, à necessidade de uma maior liberdade de escolha em relação ao conteúdo e veiculação do produto industrial (capa, encarte, estratégias de divulgação sem o pagamento de jabaculê). Para as novas gerações consumidoras de música saberem (alguém se exclui dessa?): não foi o Lobão que criou a “Música Independente” no país do carnaval! Essa necessidade surgiu como prerrogativa à existência criativa dos emergentes compositores de então, em um momento onde a música brasileira de mercado e os espaços promocionais, e as gravadoras multinacionais que o detinham, se distanciavam de um sentido de renovação de nomes e linguagem.

Beleléu: marginal urbano entre marginalizados


Você acredita que este mesmo movimento teve o reconhecimento que merece por parte dos pesquisadores, críticos ou ouvintes?

Não! Ainda noto alguma resistência entre os historiadores em dimensionar suas contribuições – o viés do pensamento único e tropicalista ainda predomina. Mesmo o potencial de mercado dessa geração de criadores não atingiu o seu máximo, e como a internet é algo ainda não muito popularizado há esperança de que isso aconteça. Mas não creio que os trabalhos mais experimentais dessa época encontrassem outra ressonância de público. Reconhecimento crítico eles tiveram sim, mas com ressalvas: numa entrevista me lembro do Arrigo ter falado que nem os críticos que falavam bem de seu trabalho o ouviam... A bibliografia musical ainda é incipiente, se formos compará-la à amplitude e à diversidade da produção. Também pela oportuna atualidade de alguns desses trabalhos, é possível um novo ciclo de interesses. Pelo que foi divulgado, parece que toda obra do Itamar está para ser relançada em formato digital, numa mesma caixa. Oxalá esse tipo de iniciativa ajude a promover outros compositores, intérpretes e álbuns seminais dessa e de outras épocas. Isso seria um enorme feito à memória musical.

O cantor e compositor Itamar Assumpção teve sua arte ofuscada pela sua biografia atribulada e bastante sui generis. Até que ponto o vício de classificá-lo como um compositor dito marginal (como aconteceu com Jardes Macalé, Jorge Mautner e Luís Melodia), imposto pela indústria cultural, atrapalhou a melhor compreensão de seu trabalho?

Ele deu nova e impactante roupagem ao malandro clássico delineado nos sambas, com o personagem Beleléu, forjou-se marginal urbano entre marginalizados – ali, por opção, além, “sobrevivente”. Não por acaso, o título do seu primeiro trabalho, Beleléu, Leléu, Eu, gravado em 1980, desconstrói o nome do personagem, apontando sua agressiva modernidade e uma fratura evidente – o alter ego capaz de expiar as dores de nascer negro e pobre em um país mestiço onde o preconceito é velado até mesmo aos pés descalços do redentor. Após desconsertar a fisionomia da música negra daqui, Itamar enveredou por searas menos inóspitas mas não demasiadamente hospitaleiras – ou, como ele mesmo disse, na música homônima à canção tropicalista, Baby: “duvido que me chamem pra sentar naquela mesa, e a grande família já não é tão grande”. Apesar de não o terem convidado para o banquete dos escolhidos, não tem como, sua arte jamais passará em brancas nuvens por esse céu de cor indefinível, outrora mítico. Maldito, amaldiçoado, nego dito, a música de Itamar jamais será proscrita. Com alguns poréns – popular pelo ritmo e pela dicção, difícil pela ótica e pela órbita cafuza de sua musicalidade cheia de breques e silêncios.

Há resquícios na cena musical brasileira do que já vinha sendo desenvolvido por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção?

Não diria que há trabalhos comprometidos absolutamente com suas estéticas, demasiadamente autorais e intransferíveis, essa busca de originalidade deveria nortear todo o trabalho criativo, pena sabermos não ser assim a realidade da maioria... No trabalho da banda paulistana Dona Zica - onde atuam Anelis, filha de Itamar Assumpção, Iara Rennó, filha de Alzira Espíndola, que por sua vez foi parceira dele, e Gustavo Ruiz, filho de Luiz Chagas, guitarrista da banda Isca de Polícia, de Itamar... - há um iminente parentesco com o trabalho do finado compositor paulista. Algo um pouco menos evidente no som do Nhocuné Soul, também de sampa, faz essa ponte. B Negão, rapper carioca, declarou-se muito ligado às tramas sonoras do Nego Dito. Já Arrigo, que mais recentemente tem se voltado à produção de música escrita, não deixou muitos herdeiros. A banda gaúcha Graforréia Xilarmônica, que mescla sonoridade da jovem guarda ao dodecafonismo, reconhece essa influência entre outras. Agora, é importante e urgente que se conheça o trabalho da Patife Band, do Paulo Barnabé, irmão do Arrigo, que mesmo sem ter uma ampla discografia, apenas dois LPs lançados em 20 anos, é o mais bem acabado exemplo da contundência estética do irmão mais conhecido. Segundo Arrigo, Paulinho, como é chamado, foi mentor do tipo de som que fez, nos anos 80, uma fusão entre a música popular urbana e a música erudita contemporânea. Em tempo, Paulo também foi parceiro de Itamar Assumpção desde Londrina, e integrante da primeira formação da banda Isca de Polícia.

-Quais seus planos para o futuro?
- Estou ainda divulgando meu livro, tramando um novo e bolando um projeto para levar finalmente às telas essa pesquisa que, como foi dito anteriormente, nasceu com esse propósito.

* O teatro Lira Paulistana, sediado num porão que comportava cerca de 200 pessoas, localizado no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, foi inaugurado em 1979. Até 1986, ano de seu fechamento, abrigou, além de memoráveis shows de Almir Sater, Tetê Espíndola e etc – também uma embrionária cena underground, onde figuraram nomes como Ultraje a Rigor e Titãs -, um selo de grande importância para a divulgação musical independente, lançando trabalhos de Itamar Assumpção, Rumo, Premeditando o Breque (Premê), Grupo Um, Língua de Trapo, entre muitos outros.

Quem estiver interessado em adquirir o exemplar de “Na Boca do Bode – Entidades Musicais em Trânsito” pode fazê-lo por meio do e-mail: nabocadobode@gmail.com

Toninho, o audaz



A conversa que segue é misto de sonho, realidade, duração permeada por palavras inesquecíveis, quiçá eternas. Ela é fruto do encontro de um repórter acanhado, brasileiro, 32 anos, diante de um dos totens sagrados da deusa música: o mineiríssimo cantor, compositor e arranjador Toninho Horta.

Na memória agitam-se ondas colossais – o gosto do mar de Minas vem à boca, trazendo ao cais da razão a data precisa daquele momento: sábado, 7 de maio de 2005. Nos acordes do violão de Toninho (tão absurdamente verde e amarelo) surgem sereias de canto casto e profano. O espírito de Aleijadinho nasce. Aquece.

Toninho esta à vontade. Veste uma camiseta larga, com motivos tropicais, contrastando com sua calça desbotada. Seu par de tênis parece saído da capa do primeiro álbum do amigo-irmão Lô Borges. Traz poeira de estradas e estrelas.

O compositor morde uma maça enquanto fala sobre a vida e a carreira. Ah, a memória...Sim...seus olhos faiscantes miram este escrevinhador, enquanto umas moçoilas se divertem à mesa de frios impecavelmente disposta no camarim.

Eis o registro daqueles fulgurantes momentos pré-show, rolado em Lavras, Minas Gerais, naquela exata data, bem abaixo da Linha do Equador. Caminhemos a pé ou de jipe, com ou sem nossas Dianas interiores, nos joguemos.


- Gostaria que você começasse falando de sua infância e adolescência.
- Nasci em Belo Horizonte em 1948. Desde criança eu ouvia música clássica. Minha mãe tocava modinhas mineiras no bandolim e meu pai no violão. Lembro daquelas destas de congado e de Folias de Reis de Minas Gerais. Eu sempre ouvir aqueles cantos barrocos que eram tocados.

- Quais foram as suas maiores influências musicais?
- Quando adolescente, comecei a ouvir jazz por influência do meu irmão mais velho, o Paulinho Horta, casado com a Gracinha Horta, presente neste show. Foi ele que “me colocou na roda” desta atividade profissional quando eu tinha 16 anos. Eu comecei a compor 13 anos de idade. Depois das primeiras composições fui para o Rio de Janeiro e lá participei de vários festivais da canção popular brasileira. Isto aconteceu junto de outros músicos como o grupo MPB 4e a cantora Joyce. No final dos anos 60, Alaíde Costa e Leny Andrade começaram a gravar músicas minhas. A partir daí, e ao longo destas mais de 30 anos me lancei como compositor e guitarrista.

- Este ano a cidade de Belo Horizonte está comemorado 40 anos do “Berimbau Jazz Clube”, um dos principais redutos da nata dos músicos mineiros, como Milton Nascimento, Nivaldo Ornelas, entre outros. Como foi, para você, participar de todos estes acontecimentos?
- Foi um acontecimento muito importante a existência do “Berimbau Jazz Clube”. Eu era na verdade o “mascote” dos músicos. Tinha 16 anos e não podia ficar lá dentro por causa da minha idade. Cheguei a entrar lá apenas uma vez e bem rapidamente. Mas sempre convivi com os músicos da geração de meu irmão que passaram por lá: o Nivaldo Ornelas, o Wagner Tiso e muitos outros. Todos faziam música para sobreviver e ganhar uma grana. Curtíamos muito jazz e compositores como Duke Ellington, Stan Getz, e cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. O grupo do bar tinha uma cultura densa e rica. Foi aí que adquiri o meu gosto pelo jazz e desenvolvi meu caminho harmônico e o jeito de tocar.

- Conte-nos um pouco sobre a música “Manoel, o audaz”. Como ela foi composta e o que ela simboliza em sua obra?
- O compositor Fernando Brant sempre foi um grande poeta. E para cada compositor que ele trabalhava ele escolhia temas e tinha uma característica literária muito própria. Eu sempre fui uma pessoa simples e ligada ao lado telúrico da vida.Por isso, ele sempre fez letras das minhas músicas com imagens do cotidiano. Por exemplo, “Diana”, era uma cachorra dele. Já “Falso Inglês”, era uma gringa que estava cantando em certa ocasião. Na verdade, ele fazia letras sem me perguntar e quando eles chegavam era sempre uma surpresa. “Manoel, o audaz” virou hino. Ela história de um jipe, cujo modelo é de 1951. Mas a música foi feita nos anos 70. Ele expressa toda a vontade de ser livre, justo e amar a natureza e as pessoas. Uma das poucas músicas que combinei com Brant como seria a letra foi na canção “Céu de Brasília”. Foi engraçado por que na mesma hora que mostrei a música a ele, logo disse: “Olha, eu nunca fui a Brasília. Como vou escrever esta letra?”. Depois ele escreveu uma letra e era como conhecesse a capital federal de cor e salteado. As melodias inspiraram os poetas e o Brant sempre teve uma sacação muito grande com o meu trabalho.

- O Museu do “Clube da esquina”, projeto iniciado pelos membros do grupo de músicos mineiros da década de 70, recém fundado na capital mineira, está cheio de projetos bastante expressivos, buscando resgatar a memória afetiva e musical dos mesmos. Gostaria de saber se você tem participado deste projeto e como o analisa?
Estou participando. Sou um dos membros fundadores do “Clube da Esquina”. Na verdade, este movimento musical não foi uma coisa programada. Ele foi um acontecimento. Depois de uma década que o primeiro disco saiu, em 1972, tanto o público como a imprensa, começaram a reconhecer que aquilo era um movimento musical. Isto aconteceu devido ao grande número de compositores e interpretes talentosos deste que é, sem sombra de dúvida, um disco histórico para a MPB (Música Popular Brasileira). Depois veio o disco “Clube da Esquina 2”, em 1978. Um site foi lançado recentemente e ele foi criado justamente para os membros se reencontrarem e para podermos criar outros projetos para passar as gerações futuras o legado que criamos, vivemos e acabamos dedicando para outras gerações.

- Vocês já chegaram a cogitar o lançamento do “Clube da Esquina 3”, com uma nova geração de músicos, cantores e compositores mineiros?
- Esta pergunta foi sempre levantada, mas o Milton Nascimento, “o carro-chefe do movimento”, já afirmou que o “Clube da Esquina 3”, pode ser considerado seu álbum “Anima”(1982). Acredito que ele não tem vontade ou interesse mais de reunir as pessoas daquela época. Varias vezes eu tentei reunir Wagner Tiso, Lô Borges, telo Borges,, Beto Guedes, Flávio Venturini, mas sempre faltava o “Bituca”. A gente respeita a vontade dele. Agora, quem sabe poderemos ter em breve o “Clube da Esquina 4”? a questão é ter oportunidade. A única coisa que posso afirmar é que estamos todos disponíveis para que isso aconteça. É só o “chefe” chamar. É preciso dizer que a nova geração de músicos mineiros, apesar do destaque nacional, não tem uma ligação como “Clube da Esquina”. A não ser Samuel Rosa, vocalista do “Skank”, que foi vizinho de Lô Borges no bairro de santa Tereza, em belo Horizonte. Minas Gerais produziu uma variada gama de estilos e cada uma terá sua praia.

- Minas Gerais, desde muito tempo, vem produzindo compositores c cantores de renome. Poderíamos citar Ari Barroso, o “Clube da esquina” e mais recentemente bandas pop como Skank e Jota Quest. O Estado parece ter produzido uma sonoridade própria, diferente, por exemplo, da Tropicália. A que você atribuiria isto?
- Acontece que o mineiro não faz tanto estardalhaço. Nós somos muito de vender o peixe e costumamos fazer as coisas em silêncio. E quando a coisa é vanglorizada e valorizada, é que as pessoas se tocam da importância daquilo. A gente nunca quis divulgar o “Clube da Esquina” como um grande movimento. Mesmo porque cada membro tinha sua própria carreira ou mesmo a viu despontar a partir do movimento. Eu considero o “Clube da Esquina” um movimento mais importante musicalmente do que a Tropicália. Ele foi mais revolucionário na densidade musical. Com toda a certeza ele é o movimento musical, mais importante da segunda metade do século XX no Brasil. Tínhamos criatividade melódica, harmônica e rítmica. Os padrões rítmicos eram infinitamente superiores aos trabalhos musicais da Tropicália, onde a musicalidade ficava a cargo de Rogério Duprat, que acabou colorindo os arranjos das músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mas a importante de estética, de mudanças de hábitos, afinal, foram eles que colocaram a guitarra MPB.

- Ao longo dos últimos anos você tem dirigido seu trabalho para um público selecionado. Sua obra tem ganhado, inclusive, fama internacional. Como você analisa o momento musical brasileiro? Há espaço para trabalhos como o seu?
- Sou muito valorizado no Brasil. Mas acontece é que se o grande público conhecesse o meu trabalho ele poderia comprar mais discos e irem aos shows. Meu trabalho e amplo: vai do pop, passa pela bossa nova, o forró, entre outros. Lá fora a receptividade é muito maior. Consegui criar uma escola em diversas partes do mundo. Estarei nos próximos dias em turnê pela Áustria, Espanha, Escandinava, Dinamarca e Suécia. Em junho, eu volto para a Europa onde irei participar de vários projetos.

- É difícil fazer música instrumental no Brasil?
- Sou um músico privilegiado. Estou sempre viajando para fora e gravando com outros músicos e, hoje, sou uma referência para as novas gerações. O que me alegra e muito.
Isto é que significa que eu venda milhões de discos e faça dezenas de shows anualmente. O Brasil tem espaços ótimos onde os músicos instrumentais podem atuar. Além disso, há muitos festivais de jazz, programas de rádios culturais e universitárias que tem interesse na nova geração de músicas instrumentais no país. A música mais bem feita e cuidada é aquela feita pelos instrumentistas. Os cantores dependem de boa formação dos músicos. Sem eles, a música brasileira vai ficar muito “mal na fita”. Ela vem enriquecer as técnicas e as versatilidades dos músicos. A MPB é considerada, hoje, a música mais rica do mundo. Apesar de ela não estar na mídia, ela continua substanciosa e poderá alimentar as futuras gerações.

- A quantas anda o projeto de lançar o “Livrão da Música Brasileira”?
- O livro é um projeto que eu desenvolvi há 20 anos. Eu consegui um patrocínio para terminar a pesquisa ainda neste semestre e espero que o livro seja publicado ainda este ano.
A obra apresenta cerca de 700 partituras dos compositores mais importantes dos últimos 130 anos. Ele trará verbetes, indicações de referências de gravações, entre outras coisas. É um trabalho muito desgastante, mas motivante e enriquecedor. Graças ao Governo do Estado de Minas Gerais, a Cemig (Companhia Elétrica de Minas Geraes), da Civita, do Fundo Nacional de Cultura, que estão dando toda a credibilidade para o projeto, creio que até o final deste ano a obra vai chegar às livrarias, bibliotecas e universidades do país.

Como é para você retornar ao interior de Minas Gerais, no caso, Lavras, cidade bem próxima de Três Pontas, um dos berços do “Clube da Esquina” e terra natal, por adoção, de “Bituca”?
Lavras é um lugar onde eu sempre quis tocar. Acho que o teatro Lane-Morton tem até muitos problemas, pois o palco é alto e o som costuma retornar muito. Mas apesar de não ter um som limpo e uma acústica legal, eu estou muito feliz de estar aqui. Lavras é uma cidade que tem muitas universidades, um pessoal bonito, jovem e com garra. Estar no interior de Minas Geraes é uma maravilha. Aqui é ode reabasteço minhas energias para voltar para os trabalhos internacionais.

- Quais sãos seus planos para o futuro?
- Pretendo lançar um DVD ainda este ano. O trabalho é fruto de um show que aconteceu no Sesi Minas no ano passado. Devo também lançar mais um CD inédito. Este ano eu também já produzi a turnê do novo show de George Benson no Brasil. Nos conhecemos recentemente e nos tornamos grandes amigos. George Benson é um grande e talentoso músico de jazz. Ele é uma cara altamente musical.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Os Cantos de Afrodite



Três femininos cantos dispersos na noite do Brasil. Vozes cálidas que cortam o vento da madrugada fria latino-americana. De tão lúcidas, podem chegar a assustar, encharcadas que estão de um sentimento doce, amoroso, levando-nos a um estado quase permanente de beleza. O sentimento benfazejo nasce ao ouvirmos a tríade de lançamentos que a gravadora Lua Discos disponibiliza no mercado fonográfico nacional. São eles “Voz & Piano” (Alaíde Costa & João Carlos Assis Brasil), “Faço no Tempo Soar Minha Sílaba” (Célia & Dino Baroni) e “Se É Pecado Sambar” (Mariana de Moraes).

Canto I


O que se procura reter entre os dedos (ou seria dos ouvidos?) é a magia de reencontrar a cantora e compositora Alaíde Costa em parceria com o já consagrado pianista João Carlos Assis Brasil. Encontro histórico da dupla idealizado pelo produtor José Milton.

“Voz & Piano” é intimismo lapidado, sem virtuosismos vocais ou instrumentais. Repertório impecável, escolhido a dedo. “Janelas Abertas” (Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Morares), “Essa Mulher” (Joyce/Ana Terra), “Amargura” (Radamés Gnattali/Aberto Ribeiro), mostram um tempo em suspensão. Aquele da delicadeza nacional perdida, ausente, em meio a mortos e feridos de nosso dia-a-dia.

No mundo dionisíaco da dupla, clássicos tantas vezes mumificados pelo tempo e versões pouco felizes são presenteados com um sopro de vida e leve e embriagada. É assim nas dolentes e emocionadas interpretações de “Nunca” (Lupicínio Rodrigues) ou “Estrada Branca” (Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes).

“Foi uma emoção grande e uma espontânea troca de idéias. O objetivo era gravar só canções de amor, sem a coisa de cortar os pulsos. Quando fomos fazer a primeira música, parecia que tínhamos ensaiado na véspera”, recorda Alaíde Costa sobre o fiel parceiro.

Canto II



Dobra-se uma esquina da canção nacional. A cantora Célia, passados mais de 35 anos de carreira, continua dando das suas, com a gana que lhe sempre conferida no momento de soltar a voz e os sentimentos que a permeiam.

Escoltada por Dino Baroni, ela chega fervendo neste seu “Faço no Tempo Soar Minha Sílaba”. O título (retirado de uma das mais notáveis canções pós-tropicalista de Mano Caetano), bastante original, ajuda a entender a escolha de um repertório que procura unir tempos e espaços distintos. A produção ficou a cargo do jornalista e pesquisador musical Thiago Marques Luiz.

Não? Vamos lá: “Serra da Boa Esperança” (Lamartine Babo), “Cabaré” (João Bosco e Aldir Blanc), “Mente ao Meu Coração” (F. Malfitano) e “Geraldinos e Arquibaldos” (Gonzaguinha). Números musicais que se desvelam no canto de uma intérprete experiente e em estado de graça, que brinca, espontânea, no terreno profícuo dos acordes variados e sucintos do violonista.

Quem também pinta na área com participações mais que especiais são Zélia Duncan (“Disritmia”), Dominguinhos (“Mãe, Eu Juro/ Sem Açúcar”), Lucinha Lins (“Quase”) e Beth carvalho (“Pressentimento”).

Canto III



Mariana de Moraes chega com tudo em “Se é Pecado Sambar” (Lua Music), seu primeiro CD solo lançado no Brasil. Ela ressurge depois de um longo período de hibernação. Seu último registro fonográfico aconteceu em 1997 ("Alegria Continua"), quando esteve ao lado de Zé Renato e Elton Medeiros.

Neta do compositor e poeta Vinicius de Moraes (1913–1980), a cantora tem no currículo duas décadas de atividade artística, que inclui, além da música, cinema, teatro e novelas. Mais recentemente, ela deixou os marmanjos embasbacados com sua aparição relâmpago (estou entre eles, ok?) no documentário sobre seu avô, “Vinícius”, de Miguel Faria Jr.

“Se é Pecado Sambar” foi lançado nos Estados Unidos em 2001 e no Japão, em 2003. A idéia partiu do arranjador, compositor e pianista Guilherme Vergueiro, que fez a proposta para a interpréte. Depois do convite aceito por ela, o projeto foi encampado por um selo norte-americano.

Mariana é acompanhada pelo carioca Carlinhos Sete Cordas nos violões e cordas. No repertório há espaço para o ecletismo. A cantora passeia por estandartes bossanovista e jazzísticos, como “Fotografia” (Tom Jobim) e “I Fall In Love Too Easily” (Kahn/Styne), além do sambinha “Agora é Cinza” (Bidê/Marçal), entre outras belezuras.

A meia-noite no jardim lupicínico de Aldir


Do mesmo catálogo da Lua Discos, vale conferir “Vida Noturna”, álbum do outsider carioca Aldir Blanc. Compositor-cronista-escritor-psicólogo-parceiro-amigo-irmão de João Bosco que vem iluminado com seu candeeiro de idéias a cultura brasileira nas últimas décadas.

Lembrando um mosaico de retratos perdidos numa noite suja, o álbum funciona como uma catarse, que eclode em pequenos tesouros da enluarada e dionisíaca lira do compositor. “Eu tenho num bolso/uma carta,/uma estúpida esponja/pó-de-arroz/e um retrato, meu e dela,/que vale muito mais/do que nos dois”, diz a letra da faixa-título. E estamos entendidos, não é mesmo?

Compositor de sanha criativa rara, capaz de transitar entre a alma feminina, o cotidiano rodriguiano e as situações cômicas e mambembes, ele nada de braçada neste seu segundo título lançado em 2005.

Aldir Blanc tem ainda a companhia de parceiros e músicos memoráveis, tais como Mauricio Tapajós, Cristóvão Bastos, Guingua, Moacir Luz, entre outros.

Meditações sobre o tempo



Nossa dica também vai para o mais novo álbum do cantor e compositor Zé Guilherme, “Tempo ao Tempo”, que traz regravações de Zeca Baleiro, Vitor Ramil, Péri, Carlos Careqa e Marcelo Quintanilha.

Cearense de Juazeiro do Norte e radicado em São Paulo desde 1982, ele vem se firmando como uma dos grandes artistas contemporâneos do País, ao unir repertório criterioso, voz precisa e refinada, interpretação marcante e forte presença de palco.

Segundo Zé Guilherme, falar do tempo, “é falar genuinamente do sentimento humano, denso e profundo, leve e epidérmico, divino e do mundo. É traduzir espiral e labirinto, nos quais habitamos e nos aprimoramos, a partir de distintos pontos de vista”.

O cantor é acompanhado pela cozinha sonora de Douglas Alonso (percussão), Estevan Sinkovitz (guitarra e violão de aço) e Luciano Barros (baixo). Samplers, arranjos e bateria ficam por conta de Serginho R.

Quem aparece para uma canja em “Caminhos do Coração”, típica “canção peito aberto” do moleque serelepe Gonzaguinha, é Vânia Abreu. “É tão bonito quando a gente entende/Que a gente é tanta gente onde que a gente vá/ E é tão bonito quando a gente sente/Que nunca está sozinho por mais que pense estar”. Explodem corações. Galáxias se abrem. Tudo agora é calmaria.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Toda Poderosa


Foi ele, só podia ser ele, o grande produtor Aloysio de Oliveira, quem preconizou certa vez a respeito de uma das mais importantes intérpretes da música nacional. “Existem poucos artistas que possuem a terceira dimensão. A terceira dimensão é uma força de personalidade que permite ao artista hipnotizar o público. Maysa tem essa força”. A frase, eternizada na contracapa daquele antológico álbum do mito, gravado em 1964, hoje parece soar como mais um lugar comum.

No entanto, as aparências enganam. Maysa (1936-1977), cantora e compositora carioca, responsável pela criação de verdadeiros hinos da dor-de-cotovelo, tais como “Ouça” e “Meu mundo caiu”, resiste além dos rótulos. São muitas as suas faces. Doce e amarga. Áspera e suave. Mutante. Visceralmente única e eterna.

Todas elas se enredam em “Maysa - Só numa multidão de amores” (Editora Globo), biografia escrita pelo jornalista Lira Neto, que procurou, de forma inédita, aproximar os leitores da complexa e escancarada trajetória da mulher que marcou com seu talento e personalidade pelo menos três décadas da canção e da sociedade brasileira.

Uma história de rotas transversais que se entrecruzam tanto por inferninhos escuros, enuviados pela fumaça de cigarros e doses cavalares de whisk e almas perdidas, quanto pela pré-história de uma mídia cada vez mais sedenta e voraz por escândalos e manchetes sensacionalistas. Paralelas que, entre outras, vão dar em alucinantes e emocionados momentos musicais, criadores, etílicos e sentimentais protagonizados por Maysa.

Na construção de seu livro, Lira Neto partiu de pesquisas em arquivos familiares, entrevistas com cerca de 200 pessoas, entre parentes, amigos, ex-namorados, músicos e produtores, para chegar ao resultado final de seu trabalho. Empreitada de fôlego que levou o jornalista a ter acesso aos diários íntimos de Maysa, graças à generosidade do filho da cantora, o diretor de cinema e televisão, Jayme Monjardim.

De sua casa em São Paulo, ele nos concedeu uma entrevista exclusiva por e-mail na semana passada. Uma conversa agradável repleta de verve, conteúdo e beleza. Dessas que deixam a gente com o coração na mão de tanta alegria, como se ouvíssemos o canto estelar da musa intrépida. Divirtam-se!

- Como surgiu a idéia de escrever o livro?
-Todo biógrafo sonha em escrever um livro sobre um personagem como Maysa: alguém que viveu de modo intenso, que mergulhou na vida sem rede de proteção. Assim, biografar Maysa era um sonho antigo. Contudo, sabia que vários colegas jornalistas já haviam tentado – sem sucesso - abordar seu único filho, o diretor de cinema e televisão Jayme Monjardim, para ter acesso aos "baús" da cantora e compositora. Tive, felizmente, mais sorte. Um amigo em comum, o escritor Fernando Morais, fez a mediação entre nós e, assim, Jayme concordou em confiar-me o precioso acervo familiar.

-A narrativa se inicia com uma linguagem alucinante, reconstituindo a segunda tentativa frustrada de suicídio de Maysa. Foi uma forma de pegar o leitor pelo colarinho e colocá-lo diante da biografada?
-Um bom livro tem que fisgar o leitor desde a primeira linha. Em vez de começar de forma burocrática, com algo do tipo "Fulano de Tal nasceu na cidade x, no dia y de dezembro de mil novecentos e não sei quanto", é preciso transportar os leitores imediatamente para dentro de uma cena, na qual se apresente o personagem de forma atraente e carregada de impacto. Para tanto, no caso de uma biografia, isso só é possível por meio de uma pesquisa apurada, detalhista. O acesso aos diários de Maysa foi fundamental para isso.

- Maysa desenvolveu uma relação complexa com a imprensa e seu público, misturando momentos de atração e repulsa. Para você, ela pode ser um dos expoentes deste fenômeno tão conhecido no mundo contemporâneo, quando o artista passa a ser utilizado pela mídia e vice-versa?
- Maysa foi, talvez, a primeira artista brasileira a ser alvo e artífice deste fenômeno tão contemporâneo que é a construção midiática de uma celebridade. Nenhuma outra personalidade do mundo artístico nacional havia, até então, tido a vida mais devassada pela imprensa do que ela. Ao mesmo tempo, ninguém soube tirar maior proveito disso do que a própria Maysa. Tudo que fazia ou dizia virava notícia. Tinha um talento extraordinário, uma voz singular, mas muito de seu sucesso advinha também de sua capacidade de gerar fatos para o apetite dos jornalistas à caça de escândalos e fofocas. Ela tinha absoluta consciência disso. Tanto que guardou cada linha que se publicou sobre ela – falassem bem ou falassem mal - ao longo de sua carreira.


-Você teve acesso irrestrito aos diários íntimos da cantora e compositora. Como conseguiu esta façanha? Houve alguma restrição por parte de seus familiares?
- Nesse aspecto, tive o cenário ideal para um biógrafo: acesso total ao acervo da família e, ao mesmo tempo, liberdade completa para escrever sobre tudo aquilo que eu apurasse durante a pesquisa. Desde o início, sabia que não faria sentido nenhum fazer uma biografia em que Maysa fosse retratada de forma rósea e idealizada. O livro tinha a obrigação de ser fiel ao mesmo espírito de liberdade que norteou a existência de uma pessoa transgressora como Maysa.

- Em alguns momentos temos a impressão de que Maysa sabia perfeitamente que entraria para a história da MPB, não só pelo talento nato, mas pela sua vida tresloucada, que andava junto com sua arte. A construção do mito em torno dela parece moldada com o cuidado de um detalhista. Concorda com esta afirmativa?
- Maysa tinha um inegável senso de posteridade. O fato de ter escrito diários e ter guardado uma montanha de recortes de jornais e revistas demonstra isso com clareza. Mas ela não fazia disso – o que você chama de "construção do mito" - algo tão deliberado assim. Ela não era, de modo algum, uma pessoa racional e calculista. Ao contrário: era absolutamente espontânea, intuitiva. O que ela tinha de diferente era uma inteligência aguda, uma sensibilidade muito acima da média, uma certeza de que, além de excelente cantora, era também uma mulher muito à frente de sua época. Mas não vivia de forma tresloucada para moldar uma imagem pública baseada na transgressão. Longe disso. Na verdade, ela era a mais perfeita tradução dessa própria transgressão. Nela, nada era forçado, artificial, fabricado. Apenas queria viver e cantar aquilo que acreditava, a despeito de sempre ter pago um preço alto demais por isso.

- Na orelha do volume, Ruy Castro escreveu uma verdade inconteste, a de que Maysa, a despeito de sua luta pela felicidade e seu talento, foi vítima de inimigos invencíveis, como o preconceito, a ignorância e a fatalidade. De alguma forma, eles continuam a fazer vítimas dentro e fora da música?
- Infelizmente, não vejo mais tanta gente, no cenário artístico brasileiro, que encarne a mesma verdade e a mesma autenticidade que eram tão típicas de Maysa. Hoje vivemos o império do politicamente correto, a síndrome do bom-mocismo. É uma era de celebridades instantâneas e plastificadas, de talentos pasteurizados. Almas radicais como Maysa são cada vez mais raras.


- Qual tem sido a resposta do público diante do trabalho?
- Felizmente, a melhor possível. Dois meses após o lançamento, já foram feitas quatro tiragens do livro. Um sinal inequívoco de que Maysa – tanto em sua música quanto em sua atitude - continua atualíssima.

- A proibição judicial da comercialização da biografia "Roberto Carlos em Detalhes", do jornalista Paulo César de Araújo, reacendeu o debate em torno do direito de expressão no Brasil. Qual é o seu posicionamento diante deste caso?
- O caso da proibição da biografia de Roberto Carlos significa um atroz obscurantismo. Sou radicalmente contra tirar livros de circulação para transformá-los em papel reciclado. Se Roberto se ofendeu com algo que por acaso leu, que processasse o autor. Ele tinha esse direito. Mas retirar os exemplares das prateleiras das livrarias é uma espécie ostensiva de censura. Mas o que mais temo nessa história toda é o efeito que o episódio possa vir a produzir no mercado editorial. Pior do que a censura institucionalizada é a autocensura.

- Você poderia adiantar quais são os seus planos para o futuro?
Tenho alguns novos projetos na fila, mas prefiro não revelá-los, por enquanto. Primeiro quero conseguir acesso a documentos exclusivos, que irão alimentar meu próximo livro. Nos próximos meses, direi do que se trata. Mas ainda é segredo.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

As maravilhas das Geraes



Vem das Geraes, de suas montanhas, de sua terra, de seu povo, todo este encantamento misterioso, que teima em se fazer arte. Festa. Celebração. Alegria. Seja na literatura (salve, salve Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava!), no cinema (alô, alô Humberto Mauro!), nos quadrinhos (diz aí Ziraldo, Henfil & Cia), na política (Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves), não importa, Minas continua comendo pela beiradas.

Quando o assunto é música, não é diferente. Prova disso é a enxurrada de DVD's que mostram a riqueza cultural de Minas Geraes. Quatro grandes lançamentos, Wagner Tiso, os grupos 14 Bis e Uakti e o documentário "Violões de Minas", amplificam as belezas e os mistérios dos sons produzidos no Estado.


É o que vocês conferem abaixo,










Simplicidade e Sofisticação



Wagner Tiso dispensa apresentações. Compositor, orquestrador, pianista e regente, ele representa hoje um dos maiores ícones da música brasileira. Para marcar a festa de seus 60 anos de vida, 45 de profissão, ele decidiu lançar um DVD histórico.

Gravado em dezembro de 2005, o show traz Wagner à frente da Orquestra Petrobrás Sinfônica junto de convidados especialíssimos: Milton Nascimento, Gal Costa, Cauby Peixoto, Paulo Moura, Grupo Uakti, Tizumba, Nivaldo Ornellas, Robertinho Silva, Toninho Horta e Guarda de Moçambique do Divino.

A apresentação é um passeio pelos sons de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, da Espanha e dos caminhos de Zegreb. Uma musicalidade que mistura os sons criados pelos ciganos, as congadas mineiras, o rock, a canção brasileira, as trilhas de cinema e as suítes para grandes orquestras.

O DVD registra depoimentos dos artistas e da família. Em alguns trechos, Wagner revisita seu passado. Por detrás de seus olhos descortina-se o jovem talentoso que se aventurou pelo Rio de Janeiro com sua pequena mala de roupas e pertences à tira-colo, dormindo em ruas, ao mesmo tempo em tocava nas míticas boates daquela Copacabana luminosa.

Dividido em cinco eixos temáticos, “O olhar mineiro sobre o Rio”, “O olhar do Rio para Minas”, “O olhar mineiro revê Minas”, “O olhar mineiro vê o mundo” e “O mundo olha Minas”, o espetáculo combina simplicidade e sofisticação que sempre moveram a vida artística de Wagner Tiso. Emocionante.

Invenção e Memória


Marco Antonio Guimarães, Artur Andrés Ribeiro, Paulo Sérgio Santos e Décio Ramos, o grupo Uakti, é outro símbolo da mineiridade contemporânea. Os caras chegaram como uma experiência estética, visual e sonora em 1978 e não pararam mais. O nome conjunto de música instrumental se origina de uma lenda dos índios Tukano.

Capitaneados pelo arranjador e compositor Marco Antonio Guimarães, mestre na arte de criar instrumentos de PVC, madeira, metais e vidros, os integrantes criaram uma identidade própria. Foram e continuam a ser destaque em trabalhos de outros artistas: Milton Nascimento, Paul Simon, Ney Matogrosso, Zélia Duncan, entre outros.

O grupo é marcado por um estilo composto de estruturas rítmicas complexas. A melodia e a harmonia são forjadas de forma a aproveitar as características de execução do instrumental. Técnicas composicionais contemporâneas se misturam ao som dos instrumentos, emprestando ao conjunto um caráter primitivo à música do grupo.

“Uakti”, DVD gravado no Palácio das Artes em setembro de 2006, registra o primeiro trabalho do gênero do conjunto. São momentos de puro experimentalismo e beleza. Tudo costurado pela idéia da roda, símbolo imagético pulsante, girando, unindo o passado e o presente do homem.

Como também nosso futuro. Vale a pena conferir o minimalismo de “Música para um Antigo Templo Grego” (Artur Andrés Ribeiro) e “Ovo da Serpente” (Marco Antonio Guimarães). Caso você esteja cansado ouvir versões pasteurizadas de “Trenzinho Caipira” (Heitor Villa Lobos) e “Arrumação” (Elomar Figueira de Melo), por exemplo, corra até a loja e veja que há vida inteligente pulsando dentro da música nacional.

Rock das Alterosas


A história do rock mineiro se viu vingada recentemente com o lançamento merecido do DVD “14 Bis Ao Vivo”. Empreitada está protagonizada pela banda de Sérgio Magrão (baixo), Cláudio Venturini, Vermelho (teclados) e Hely (bateria), que chegam pela primeira vez ao formato para marcar os seus 25 anos de estrada.

Gravado no Palácio das Artes, na capital mineira, em dezembro do ano passado, o show celebra momentos marcantes da carreira do 14 Bis. Há participações especiais de amigos, instrumentistas e cantores, tais como Beto Guedes (Caçador de Mim), Rogério Flausino (Jquest – Planeta Sonho), Marcus Vianna (violino – 14 Bis Instrumental e Mesmo de Brincadeira) e Flávio Venturini (co-fundador da banda – Planeta Sonho e Uma Velha Canção Rock’and Roll).

O repertório apresenta todas as influências que moldaram o som da banda: música mineira, Clube da Esquina, música erudita, instrumental e progressiva, Beatles, rock’ and roll, vocais elaborados, harmonias ricas e ritmos variados. Há ainda a participação de um Quarteto de Cordas.

Fiquem tranqüilos, pois aquelas canções que não podem faltar em qualquer show da banda tem presença garantida. “Espanhola”, “Natural” e “Nave de Prata” são algumas delas. Só faltou mesmo um cafezinho e bom um pão de queijo para acompanhar. O que é pedir muito, né?

Acordes Dinossantes



A trajetória do violão em Minas Gerais, dos seus primórdios no século XX, até os dias atuais. Eis o fio condutor criado pelo produtor e violonista Geraldo Vianna em seu documentário “Violões de Minas”, filmado em formato de DVD, com 101 minutos de duração.

O documentário conduz o telespectador pela paisagem de Minas e suas histórias, apresentando ainda depoimentos e a musica de renomados violonistas do Estado: José Lucena, Fernando Araújo, Theodomiro Goulart, Chiquito Braga, Toninho Horta, Juarez Moreira, Beto Lopes, Wilson Lopes, Gilvan de Oliveira, Weber Lopes e Aliéksey Vianna.

No elenco de feras, constam ainda importantes personagens ligados ao universo do instrumento, como o historiador Renato Sampaio, o grande conhecedor do violão mineiro, José Pascoal Guimarães, do luthier Vergílio Lima e Dirceu Cheib, dono do Estúdio Bemol, precursor da gravação de discos em Minas Gerais.

Geraldo Vianna uniu o tom didático sobre o tema com performances musicais ousadas. Preste atenção nos enquadramentos e na paisagem urbana da cidade de Belo Horizonte, onde quase todo o documentário se passa. Sem contar o poema escrito e narrado pelo compositor Fernando Brant, que abre e fecha toda a narrativa, que se passa em um único dia.

Desde já, obra essencial para quem quiser entender porque o violão mineiro marcou época, deixando suas marcas na música nacional.

terça-feira, 17 de julho de 2007

A Todo Vapor



A rigor, o que dizer de uma época que juntou o espírito festivo das discotecas e o braço armado da ditadura militar então já mais do que estabelecida? A imagem kitsh do apresentador Flávio Cavalcante e a sensualidade abusada de Sonia Braga? O rock tropical dos Secos & Molhados e o ufanismo declarado da dupla de cantores e compositores Dom & Ravel?

Pois é bicho, estes e tantos outros contrários da década de 70 estão de volta através de dois novos livros de Ana Maria Bahiana: “Almanaque dos Anos 70” e “Nada Será Como Antes – MPB nos Anos 70”. Jornalista e escritora de responsa, ela abriu o baú de um dos períodos mais ricos da vida brasileira. Trata-se, sobretudo, de dois olhares distintos e individuais. Não há ranço saudosista, mas sim objetividade na abordagem dos assuntos.

Fartamente ilustrado, “Almanaque Anos 70” apresenta uma visão panorâmica da época através de oito temas : ícones, estilo, música, verbo artes & manhas, curtição, esporte e mídia. Um ampla e suada pesquisa, levou autora a construir todo o imaginário daquele momento de transformações e que tantas marcas deixou em diversas áreas do País.

No caso de “Nada Será Como Antes”, trata-se de um apanhado de reportagens que Ana Maria havia produzido para jornais e revistas do período. Lançado pela primeira vez em 1979, este clássico do jornalismo musical brasileiro volta à baila inteiramente repaginado. O volume traz novidades, como anotações, a carta-prefácio do jornalista Arthur Dapieve e um capítulo com textos inéditos e censurados, chamado “Do fundo do baú”.

Carioca da gema e movida à música, cinema, literatura e o que pintar pela frente, Ana Maria é um dos ícones do jornalismo cultural no Brasil. Uma carreira que cobre três décadas de reportagens e comentários sobre a cultura no Brasil e no exterior, em imprensa, rádio, televisão e internet.

Seu brilhantismo a levou ocupar lugar de destaque em redações dos principais veículos informativos nacionais: Jornal do Brasil, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Opinião e Rolling Stone. Foi assim também nos Estados Unidos (New York Times, Syndicate, Escape e Beat), Austrália (Lê Film Français, Follow Me, HQ e Cinema Papers). De 1992 a 1995 foi ainda responsável pelo escritório de Los Angeles da revista inglesa Screen International.
Segue abaixo um bate-papo realizado com a “mestra” Ana Maria nas últimas semanas através de e-mail. Uma conversa informal em que ela fala, entre outros temas, de alguns momentos da carreira, da cena musical recente no Brasil e sua incursão pelo Cinema.

- Com se deu à idéia de escrever “Almanaque dos Anos 70” e relançar “Nada Será Como Antes – MPB nos Anos 70”?
- Uma na verdade não teve a ver com a outra.... Estava conversando com a Senac há muito tempo sobre o relançamento do “Nada...” quando a Ediouro me propos o Almanaque. O meu trabalho na reedição do “Nada” terminou quase um ano antes do Almanaque _ foi pura coincidencia os dois terem saído tão perto um do outro. A minha vontade de reeditar o “Nada” era de dar uma nova leitura àquele material, que há muito tempo estava fora d corculação.

- “Nada Será Como Antes” é um marco de nossa bibliografia pop musical e comportamental. Seus textos, embora aparentemente datados, conservam um frescor pouco comum nestes tipos de textos jornalísticos, escritos, muitas vezes, no calor da hora. Como você conseguiu chegar a este resultado?
- Não tenho muita noção, não. Talvez porque eles fossem intensamente vividos, e creio que as coisas vividas preservam essa energia, que as torna sempre presentes.

- “Almanaque dos Anos 70” é um dos grandes sucessos editorias do Brasil nos últimos anos. Esta acolhida do público lhe surpreendeu?
Um pouco. Esperava uma boa reação, mas foi muito maior que o esperado. Fico super feliz porque, entre outras coisas, indica que consegui falar com um outro público, ou com vários públicos, independente de idade.

- Para muitos, a década de 70 foi um período sombrio e inexpressivo, até mesmo cafona, seja no modo de se vestir ou de se expressar artisticamente. Você acredita que os livros contribuem para rever todos estes pontos de vista, revelando outras facetas deste momento brasileiro?

-Creio que sim. Quanto mais completo o olhar, melhor!

- Como foi fazer parte da equipe que compôs as 36 edições (foi o que durou, né?) da primeira versão brasileira da revista “Rolling Stone”, um dos publicações-símbolo do pop/rock, nos anos 70? O que achou da nova versão, lançada há menos de um ano?
-Acho uma boa revista. É algo complemente diferente do projeto e metas da original, mas os tempos são outros e a própria RS é outra.

- Você costuma acompanhar o jornalismo cultural feito hoje no país? Qual a sua visão dele neste momento? Alguma coisa se perdeu pelo caminho ou houve evoluções consideráveis ao longo das últimas décadas?
- Preferia não responder esta pergunta. Acho que não tenho todos os elementos necessários.

- Novas mídias e seus suportes avançados tem provocado uma transformação acelerada no modo de produzir e consumir música no mundo. Como fiel defensora do bom e velho MP3, por exemplo, como se posiciona diante destes fenômenos tecnológicos?
- Enquanto estiverem a serviço da criatividade humana, estou navegando por essas ondas etéreas. Sou daquelas que adora uma novidade... ouço falar, vou conferir.

- Você tem acompanhado a cena roqueira/pop/mpb brasileira? Poderia destacar algum (s) nome (s)?
Gosto de Céu, Cibelle, Celso Fonseca, Bebel Gilberto. Mas na verdade tenho ouvido mais coisas muito antigas, ou então de super-raiz.

- Sua incursão pelo cinema aconteceu no ano, com o lançamento do de “1972”, filme no qual você foi co-produtora e roteirista. Há planos de sua para mergulhar novamente pelo universo da 7ª Arte?
- Com toda certeza. Com o projeto certo e as pessoas certas, estou dentro.

sábado, 7 de julho de 2007

O samba conquista a terra dos samurais



Ele poderia passar desapercebido nas ruas de qualquer cidade brasileira. O japonês Katsunori Tanaka, 47 anos, pode ser reconhecido pelos traços orientais, a bermuda e a camiseta despojadona, pulando de um botequim e outro, sempre com um copo de chopp numa das mãos.

Até aí tudo bem. Mas se de repente, como alguém que não quer nada, ele começasse a cantar um sambinha esperto? Sambinha? Sim, o cara é uma das maiores autoridades no assunto em seu país de origem.

Tanaka parece ter saído de um livro de contos de fada. O ex-cozinheiro de origem humilde travou seu primeiro contato com o gênero em 1978, numa loja de discos de Tókio, quando passou a colecionar bolachões de gente graduada: Cartola, Martinho da Vila, Beth Carvalho, entre outros.

Enfeitiçado pelos sons e a poesia de grandes mestres dos morros e Escolas de Samba do Rio de Janeiro, Tanaka, de fã incondicional passou a produtor de discos do gênero. Uma fase febril de sua vida que durou cinco longos anos (1986 a 1991).

Tempo suficiente pare deixar registrado 12 tesouros musicais no Brasil. Nove deles - “Doce Recordação” (Velha Guarda da Portela, 1986), “Peso na Balança” (Wilson Moreira, 1986), “Folhas Secas” (Guilherme de Brito, 1988), “Homenagem a Paulo da Portela” (Velha Guarda da Portela, 1989), “Mangueira Chegou”, (Velha Guarda, 1989), “A Voz do Samba” (Monarco, 1991) e “Resgate” (Cristina Buarque, 1994), ganham sua primeira versão digital no Brasil.

A gravadora Atração Fonográfica, responsável pelos lançamentos, ainda negocia com os herdeiros de alguns compositores das músicas dos discos para concluir o acerto dos direitos autorais.

Outras produções assinadas por Tanaka, como “Encanto da Paisagem” (Nelson Sargento) e “Okolofé” (Wilson Moreira), já estão sendo comercializados pela gravadora Rob Digital. Desfilam na avenida ainda “Velhas Companheiras (Monarco, Guilherme de Brito e Nelson Sargento) e “Uma História do Samba” (Monarco).

Amor & Conhecimento

Tanaka reconhece nesta aventura pelo gênero genuinamente brazuca uma forma de conhecimento, “O samba é uma música estrangeira que só conheci quando tinha 16 ou 17 anos de idade. Comecei a apreender Português só depois. Não era tão fácil entender direitinho essa música, por isso, foi uma grande experiência para mim fazer estes discos”, conclama de peito aberto nos encartes.

Num país dominado pelo carisma e o estilo clean da bossa nova, como é o caso do Japão (que o diga João Gilberto, Roberto Menescal e Marcos Valle) o produtor japonês almeja, sem muitas pretensões, propagar cada vez mais a malícia e o gingando do samba entre o público oriental.

Enquanto prepara novos lançamentos no Brasil, Tanaka encontrou um tempinho em sua agenda para bater um papo com nossa reportagem. Perguntas e respostas cruzaram o mar do Pacífico através de e-mail nas últimas semanas. O desejo era um só: desvendar um pouco da visão deste estrangeiro verdadeiramente apaixonado pela música produzida em solo brasileiro no último século XX. Arigato, Tanaka!

- Como começou a sua paixão pela Música Popular Brasileira, em especial, pelo samba?
- Foi em 76 ou 77. Existia uma pequena loja em Tóquio que começava a importar os discos brasileiros, que ninguém se interessava naquele tempo. Eu encontrei uns 30 discos brasileiros nessa loja, que devem ser os primeiros discos brasileiros que chegaram no Japão. Nesse 30 discos tinha o primeiro e segundo disco do Cartola (da gravadora Marcus Pereira). Comprei estes dois e gostei tanto que ouvi muitas vezes. Ouvindo (claro que, sem entender o português naquele tempo) fiquei querendo conhecer o Cartola pessoalmente. Comecei a juntar o dinheiro pra viajar ao Brasil, mas só consegui comprar a passagem no finalzinho de 80, logo depois que o Cartola morreu.

-Fale da sua atividade como produtor de discos no Japão, Indonésia, EUA, onde você vem desenvolvendo atividades ligadas ao chorinho.
- Acho que e difícil explicar sobre meus projetos da Indonésia. Fiquei muito interessado quando conheci um gênero da musica indonesa, chamado kroncong, que é o choro da Indonésia. Kroncong tem influência da música portuguesa, igual ao musica havaiana, que usa o instrumento bem parecido com o Cavaquinho Brasileiro etc... Aí surgiu uma idéia na minha cabeça, que foi um (re) encontro dos irmãos, o choro e kroncong. Este foi realizado quando produzi os discos da Waldjinah, que é a Elizeth Cardoso da Indonésia. Gravei umas musicas acompanhado por os músicos de kroncong e os chorões juntos. Foi uma maravilha.

- Os japoneses têm samba no pé?
- Tem gente que sabe, tem gente que não sabe, como todos os brasileiros não sabem sambar.

- Você acredita que o samba vem encontrando boa acolhida no mercado do japonês. Dá para competir com a bossa ou o gênero é algo para um público especifico?
- Nao. O samba não vendeu (e não vai vender) tanto como a bossa nova, que e uma coisa bem especial pra os japoneses. Tem gente que gosta de sambar no clube ou tem gente que gosta desfilar no carnaval, mas eles não ouvem tanto o disco. Quem ouve mais disco, é o bossanovista, como sempre.

- Há novidades suas para o mercado brasileiro?
- A gravadora Deckdisc está lançando um álbum duplo, chamado “Uma Historia do Choro”, que e meu novo trabalho. Ganhei o mais recente Prêmio Tim de Música com esse disco.

- Comente um pouco sobre estes sete Cd´s de samba que a gravadora Atração Musical está disponibilizando no Brasil.
- Pra mim os primeiros discos que produzi no Brasil são como se fossem meus filhos. Gastei tudo que tinha, sem ter esperança de ser recuperado, mas quis fazer. Não sei porque. Nunca fiquei tão maluco por musica na minha vida.

A bossa inteligente da moça



Alguém aí de vocês já deve ter ouvido pelo menos alguma vez na vida, seja dentro ou fora das pistas de dança, a mistura de bossa nova, MPB e música eletrônica que se espalhou pelo reino da música nos últimos anos.
A cantora Clara Moreno, 35 anos, flertou bem com esta cena, invadindo a área com três trabalhos bastante interessantes: “Clara Moreno” (1996), “Mutante” (2005) e “Morena Bossa Nova” (2005).

Filha da cantora e compositora Joyce e do compositor e violinista Nelson Ângelo, Clara, tentando se aproximar de uma musicalidade despojada, mas não menos sofisticada, nos presenteou com este seu “Meu Samba Torto” (gravadora Atração). Trabalho consistente de uma intérprete que tinha tudo para ser apenas mais um nome no hall deste país vocacionado a produzir ótimas e inesquecíveis cantoras, mas que inverte a matemática do jogo, com estilo.

Lançando também no Japão (Omogatoki) e Europa (Fat Out Recordings), o álbum de Clara traz participações especialíssimas do amigo, cantor e compositor Celso Fonseca, da “mami” Joyce e de seu padrasto Tuty Moreno na batera. A cozinha acústica se completa com Rodolfo Stroeter (baixo), Diogo Figueiredo (guitarra) e Ricardo Mosca (bateria).

O repertório é uma espiral de canções inéditas e outras eternizadas pelo tempo que desembocam na sutileza das interpretações da cantora. Em ritmo crescente, pisa-se, por exemplo, na areia molhada das carioquíssimas “Meu samba é torto” (Celso Fonseca) e “Litorânea” (Celso Fonseca/Rodolfo Stroiter).

De quebra, o ouvinte leva para casa a inédita “Sabe quem” (Joyce e Zé Renato), a sincopada “Sei lá” (Nelson Ângelo) e “Ela vai pro mar”, cujos versos fazem lembrar uma pequena seqüência cinematográfica.

Abusada e audaciosa, Clara rende-se aos encantos de dois clássicos internacionais, a francesinha “Mon manege a moi” (Norbert Glanterg/Jean Constantin) e a americana “Tenderly” (Walter Gross/ Jack Lawrence).

De volta ao ziriguidum nacional, ela vai de “Se acaso você chegasse” (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins), “Bahia com H” (Denis Brean), “Rosa de ouro” (Elton Medeiros/Hermínio Bello de Carvalho/Paulinho da Viola), “Morena boca de ouro” (Ary Barroso), “Copacabana” (João de barro/Alberto Ribeiro), “Moça Flor (Durval Ferreira/Lula Freire) e o sambalanço de “Vem Morena Vem” (Jorge Ben).

“Meu Samba é Torto’ não chega a ser extraordinário, mas ajuda a manter vivas, por meio de sua intenção e musicalidade, um punhado de canções que merecem ser ouvidas e apreciadas. Vale a pena conferir.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Veteranos na linha de frente



Acreditem: música não é pose ou condicionamento. Dentro dela há guerras. Dilúvios de rosas e espinhos. Daí a pergunta: é possível criar um produto açucaradamente acessível e com conteúdo para o grande público? A resposta é: sim.

Sei que a frase acima pode conter qualquer coisa de inocente ou pueril, mas é uma verdade. Pelo menos para um cara que ainda consome Cd´s (vixe, Maria!), que ouve, que respira música todos os dias. A prova dos nove são os lançamentos dos medalhões de Erasmo Carlos e Lobão.

“Erasmo Convida II” (Indie Records) e “Acústico MTV - Lobão” (Sony/BMG) chegaram às lojas recentemente. São registros de dois roqueiros veteranos de gerações distintas que preferiam subverter as fórmulas consagradas do sucesso fácil, apostando em forças criadoras charmosas, saneadoras de novas pulsões de vida, fazendo brilhar novamente repertórios saborosos.

Os amigos

No caso do “Tremendão”, ele volta com novas sacadas sonoras, mostrando parte do repertório criado a quatro mãos com o amigo e parceiro Roberto Carlos. Uma compilação de sucessos no qual o artista propõe duetos com feras do naipe de Milton Nascimento, Simone, Djavan e Chico Buarque, passando por Marisa Monte, Kid Abelha, até chegar em novos pimpolhos crescidos, como é o caso dos Los Hermanos.

Está é a segunda parte de uma longa história que começa em 1981, quando nosso cantor e compositor carioca, inebriado quem sabe por alguma iluminação divina, decidiu se enfurnar em um estúdio de sua gravadora na época, a então Philips, com uma plêiade de 12 nomes consagrados e estreantes, realizando um dos mais belos discos daquela década perdida, “Erasmo Convida ...”.

Erasmo propunha encontros para interpretações cheias de vibrações, que fariam qualquer mortal levitar. Bastaria lembrar de sua voz colada à de Gal Costa, mandando super bem no conhecido prefixo da dupla, “Detalhes” (1970). Valia tudo. Até mesmo ele e Tim Maia transformando “Além de Horizonte” (1974) num quase sambinha. Sem falar na comoção que é (re) ouvir Maria Bethânia com sua voz a encher de mais malícia erótica de “Cavalgada” (1977).

Retomando o fio da meada

Quase três décadas depois, Erasmo retoma o fio da meada que separa um projeto do outro, sem perder o viço, a verve roqueira, o entusiasmo latente que exala de seus trabalhos. Enquanto Mr. Roberto Carlos se perde em discos medianos ou mesmo em processos judiciais estúpidos, movidos contra uma honesta e séria história escrita sobre sua vida, a despeito de preservar a auto-imagem de mito que julga ter – seu parceiro desponta na frente. Pretende continuar a fazer uma nova canção que contenha algo de belo simplesmente. O que já não é pouco.

O ecletismo ganha espaço em “Erasmo Convida II”. Vide o time de arranjadores que compõem o novo projeto: Vitor Santos, Rildo Hora, Nivaldo Ornelas, Luis Cláudio Ramos, Dadi, Domenico e Kassin.

A bolachinha prateada começa a rodar acompanhada pelo balanço de Lulu Santos em “Coqueiro Verde” (1971). Lado B do repertório do artista, feita em homenagem a sua futura esposa, a letra vem carregada pela maresia do período. “Em frente ao coqueiro verde/Esperei uma eternidade/Já fumei um cigarro e meio/E Narinha não veio”.

Na mesma linhagem de seu repertorio menos conhecido chegam “Banda dos Contentes” (1976), com Skank, “Tema de não quero ver você triste” (1965), com Marisa Monte e “Pão de Açúcar” (Sugar Loaf) (1982). Ressalva-se ainda a memorável canja do grupo Los Hermanos, esbanjando talento na lírica e pesadona “Sábado Morto” (1972). Aqui descobrimos o motivo de Rodrigo Amarante ser Rodrigo Amarante.

Tem ainda Kid Abelha dando uma sutil roupagem para uma das letras mais lindas em nosso cancioneiro, a impactante “O Portão” (1974), sem falar na audaciosa e bem humorada versão de “Imoral, Ilegal ou Engorda” (1976), com Adriana Calcanhoto, e “Cama e Mesa”, que vira um samba maroto na voz de Zeca Pagodinho. Resta-nos relaxar e gozar.

Devorando chapeuzinho vermelho

Poucos artistas viveram ou espelharam tanta contradição como Lobão ao longo das últimas décadas na música nacional. Irrequieto, brigão, polêmico, avesso ao conformismo, fez das tripas coração para sempre ir até as últimas conseqüências por tudo àquilo que acreditou.

Depois de um homérico (oito anos!) bate-boca com as gravadoras, três Cd´s lançados de forma independente, “Noite” (1998) e “A Vida é Doce” (1999) e “Canções Dentro da Noite Escura” (2005), nosso roqueiro quase cinquentão chega agora com este “Acústico MTV”.

Produzido pelo experiente Carlos Eduardo Miranda, o álbum foi gravado em dezembro do ano passado no Novos Estúdios, na capital paulista. Os cenários trazem a assinatura de Zé Carratu. Gigantescas molduras em estilo clássico, mas sem qualquer imagem ou pintura, dialogam em forma e conteúdo com o trabalho.

Lobão apresenta um timaço de músicos para sua festinha particular: Edu Bologna e Luce (violões), Daniel (baixo), Roberto Pollo (teclados), Pedro Garcia (bateria) e Stephane San Juan (percussão).

Chutando a porta

Já nos primeiros acordes de “El Desdichado II”, por exemplo, é como se toda a crueza existencial de sua lira, tomasse de assalto o castelo do reino encantado e comportado da MTV. “Eu sou o tenebroso (...)/ o abandono, o inconsolado,/ o sol negro da melancolia (...) o exu, o anjo, o rei/ o samba-sem-canção/(...)”. Mas nada exemplifica mais do um estado de espírito que o verso: “Eu sou a contramão da contradição”. Puro colírio para os do público.

O velho lobo tira da cartola outros achados de seu universo paralelo: “A Vida é doce” (lindíssima!), Vou te levar” (baladona que estourou em FM’ s ditas “piratas” do País) e “Você e a noite escura”. Pipocam outros achados como “Quente” (resguardada pelo acompanhamento sutil de um quinteto de cordas) e “A gente vão se amar” (com a banda Cachorro Grande). No clima vale a pena ver de novo reaparecem “Bambino”, (do repertório dos Ronaldos, lembra?), e “O Mistério” (da fase Vimana).

Lobão está a vontade. Solta o vozeirão gritado, malandrão, carioquíssimo, uivando para o público chapado. Ele hipnotiza a platéia entre um hit e outro, mandando seu recado honestamente. “Me Chama”, “Por Tudo que For”, “Noite e Dia”, “Canos Silenciosos” “Blá..Blá..Blá..Eu Te Amo (Rádio Blá)” provam que sua música ficou melhor com o passar do tempo.

A versão arrasa-quarteirão de “Corações Psicodélicos” termina por coroar de louros a legitimada vocação pop de Lobão (“Ainda me lembro daquele beijo spank punk violento/Iluminando o céu cinzento, eu quero você inteira”). Que se cuidem as donzelas e carneirinhos de plantão, pois ele continua mais solto do que nunca.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Vozes de Minas


Já vai longe aquela histórica noite de 1967, quando o jovem compositor e cantor Milton Nascimento despontou para o Brasil e o mundo, soltando sua voz no II Festival Internacional da Canção, no Estádio Maracananzinho (RJ), para um público deslumbrado diante de tamanha originalidade.

O que pouca gente sabia era que a reboque, o gênio criado em Três Pontas trazia consigo uma leva de letristas e músicos originalíssimo, amigos e parceiros, que mudariam a cara da MPB nas décadas vindouras, vindo a desembocar naquilo que ficou conhecido como o Clube da Esquina.

Um registro valioso dos desdobramentos destes acontecimentos acaba de ganhar a forma de um livro. A façanha se deve ao jornalista, roteirista e documentarista Paulo Vilara, autor do recente “Palavras Musicais – letras, processo de criação, visão de mundo de quatro compositores brasileiros, Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes, Chico Amaral – Entrevistas” (editora do autor, 408 pág.).

Obra de fôlego que propõe uma viagem literária por meio de longas conversas, canções, imagens, poemas e discos que vasculham as gêneses de que são feitas as almas de cada um dos letristas retratados. Com sua força motriz, a narrativa desvenda mundos tão diversos quanto inusitados. Faz-se travessia. Palavra tão cara ao grupo.

Nossa reportagem bateu um papo-papo, através de e-mail, com Paulo Vilara, este mineiro na cidade de Caxambu, que desde o primeiro momento se mostrou generoso em suas palavras e gestos. Leia abaixo os principais trechos da conversa:

- O livro é resultado de nove anos de árdua pesquisa empreendida por você. Quais os motivos que o levaram a mergulhar neste universo tão rico e diverso que é a musicalidade mineira e nacional?
- Justamente essa riqueza de que você fala em sua pergunta. Em 2004 dirigi o documentário “Mil Sons Geniais”, que tratava da diversidade musical existente em Belo Horizonte. Vivo aqui desde a década de 1960 e vejo que há uma profusão enorme de talentos na cidade. Em todas as artes, não apenas na música. Aqui, a todo o momento os gênios cruzam conosco nas ruas. Estão próximos de nós, moram na casa da esquina ou no apartamento de cima. Os quatro compositores focados em meu livro são uma prova concreta disso.

-Quais as principais dificuldades para que o trabalho se concretizasse?
- Desde o primeiro momento, em 1998, quando tive a idéia, quis fazer um livro que fosse também um objeto de prazer para os olhos, com muitas imagens. Ou seja, a qualidade do projeto gráfico era uma necessidade imperativa. O que o tornaria – e tornou – um livro não muito barato para ser editado. Tem cerca de 400 imagens, em preto-e-branco e em cores. Primeiramente, isso exigiu uma criteriosa pesquisa iconográfica. Depois, elaborar projetos para conseguir patrocínio de empresas via leis de incentivo. Finalmente, obtidos os recursos (Cemig e MSA), contratar um artista gráfico capaz de executar a tarefa com a criatividade que o material levantado pedia. Neste sentido, Tavinho Bretas foi um parceiro fundamental: também músico – não profissional – amigo pessoal de Milton Nascimento e muito ligado à história do Clube da Esquina e ao movimento musical contemporâneo, não apenas deu conta do recado, como contribuiu com soluções da mais profunda inventividade. As páginas com reproduções de capas de discos são um bom exemplo da qualidade do trabalho dele.

- O Clube da Esquina sempre foi um acontecimento musical visto sempre sob uma ótica que valoriza letras, melodias e harmonias. No entanto, pouco valor é dado ao aspecto revolucionário dele, sobretudo nas letras das canções compostas no período da ditadura militar no Brasil. Para você, esta atitude contestatória do grupo consegue ser vista hoje com mais clareza?
- Tomando-se cuidado com o anacronismo, o tempo e a distância podem ser favoráveis à formulação de uma visão mais crítica e aprofundada dos acontecimentos. No caso de muitas das letras de canções do Clube da Esquina, eu trocaria o que você chama de “aspecto revolucionário” por atitude de resistência. E diria que as canções do Clube da Esquina merecem ser estudadas e analisadas sob vários pontos de vista. “Palavras Musicais” dá a sua contribuição. Mas há muito mais para ser feito e desvelado.

- O fato de Milton Nascimento permanecer no Brasil durante os anos de chumbo pode ter contribuído para criar um olhar de dentro para fora sobre o país, ao contrário de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e tantos outros que tiveram que se exilar?
- Durante o longo período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), a permanência de Milton, e de todos os demais integrantes do chamado Clube da Esquina, no país, contribuiu para dar força à resistência de muita gente. Naquela época, os shows de Milton Nascimento eram verdadeiras catarses coletivas. A respeito de canções compostas nesse período, com letras de Márcio Borges, Fernando Brant e Murilo Antunes, escrevi no livro que “muitas de suas letras de música eram como cartas abertas à população, denunciando e repudiando as barbaridades cometidas pelo governo militar e suas polícias, mas também alento a todos que lutavam para que o país retomasse os trilhos do respeito aos direitos humanos”.

- “Palavras Musicais” busca traduzir o universo pessoal e criador de quatro grandes personalidades da cultura brasileira. Depois desta longa travessia feita por você, qual a sua avaliação pessoal de cada uma delas?
- Se há um mérito no livro, creio ser este, o de expor as especificidades de cada um e mostrar as aproximações e as diferenças existentes entre Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral. Depois de ler as entrevistas, é possível ver que cada entrevistado tem uma face, uma voz, uma personalidade, uma escrita próprias.

- A leitura da obra nos permite perceber que muitas manifestações artísticas marcaram a formação dos quatro compositores, como a literatura e a música. No entanto, nada se compara ao cinema. Podemos afirmar que a 7ª Arte desempenhou papel fundamental sobre o trabalho do grupo?
- Sim, todos eles são cinéfilos de carteirinha e muito influenciados pelo cinema. Nos anos 1960, Márcio Borges chegou mesmo a escrever sobre cinema e até a escrever roteiros e a dirigir filmes de curta metragem. Murilo Antunes teve participação ativa em várias produções de cinema em Minas Gerais. Fernando Brant confessa que tinha e ainda tem vontade de dirigir filmes. Chico Amaral diz que quer escrever roteiros. Como também sou cinéfilo, escrevi sobre cinema, roteirizei e dirigi filmes, entre nós as conversas sobre cinema surgiram da maneira mais natural possível.

- Ao tirar as letras das canções do seu contexto musical e jogá-las no espaço em branco da página, você sugeriu um outro olhar sobre as composições. Foi uma maneira de aproximar a poesia da letra de música, valorizando as palavras em seu estado bruto?
- Exato. Essa é a proposta central do livro: valorizar a palavra, as letras das canções. Por isso mesmo é que selecionei quatro compositores de letras (embora Chico Amaral também seja músico, e um músico talentoso) para entrevistar.

- Se há algo unânime em todas os depoimentos, é o fato dos entrevistados confessarem ter sido influenciados pela obra de Caetano Veloso. Na sua opinião, até que ponto o Clube da Esquina e o Tropicalismo trazem algo em comum?
- Quem confessou essa influência foram Márcio Borges e Chico Amaral. Portanto, não há unanimidade. Até porque o que mais busquei foi a não-unanimidade. Quis mostrar que, embora ligados de alguma forma ao Clube da Esquina, eles se diferenciam em vários aspectos. Tanto o Tropicalismo quanto o Clube da Esquina foram antagônicos à ditadura militar. Muitos de nós perdemos parentes, amigos e conhecidos na luta contra aquele regime de exceção. Houve muita dor naquele momento da história do Brasil. Mas vejo diferenças entre os trabalhos dos dois grupos: enquanto o Tropicalismo carnavalizou a dor, o Clube da Esquina mergulhou fundo nela. Sem juízo de valor, são atitudes políticas e estilos musicais bastante diversos. Talvez, complementares: duas faces da mesma moeda.
“...e eu apenas sou um a mais, um a mais
a falar dessa dor, a nossa dor”
(trecho de “Milagre dos Peixes”, de Nascimento e Brant)

- Pode se dizer que a metáfora do trem (um dos símbolos da mineiridade), utilizada por você na obra, foi uma forma de seduzir o olhar do leitor?
- Sim. Não apenas de seduzir o olhar do leitor, mas de trazê-lo para dentro da viagem, como quem compra uma passagem de trem disposto a apreciar a paisagem da janela.

- Há uma proposta semiótica no livro, que busca unir imagem, som e palavras num mesmo fio narrativo. Como você conseguiu chegar a este resultado?
- Como disse antes, desde o início tive a intenção de fazer do Palavras Musicais não apenas um livro de entrevistas e de informações referenciais para estudantes e pesquisadores interessados na canção brasileira, mas ao mesmo tempo um objeto que fosse prazeroso ao olhar. Essa era a intenção, mas intenção é apenas um ponto de partida, nada além disso. É no próprio fazer que a obra vai sendo construída. Aos poucos ou aos saltos. Nesse processo de elaboração surgem muitas idéias, caminhos variados para unir os fios das diversas meadas. Trabalhar (no caso, escrever e editar um livro) é estar aberto às descobertas e revelações que o próprio material de pesquisa lhe proporciona. Essa disponibilidade para as novidades eu tive o tempo todo. Parece ter sido uma atitude acertada.

- O que esperar da música mineira para os próximos anos?
- A renovação das artes, em especial da música, é permanente, constante. Noite dessas assisti à premiação final do VII BDMG Instrumental. Vi e ouvi lá pelo menos uma dezena de jovens de grande inventividade, tanto como compositores quanto como intérpretes. Além desses talentos que surgem, os “antigos” continuam por aí, caminhando e compondo.

- Quais os seus novos projetos para o futuro?
- Projetos são intenções, pontos de partida. Idéias não faltam, o importante é dar início ao processo de realização delas. Vou fazer uma curta metragem de ficção este ano, 2007. E há anos escrevo, reescrevo e devolvo à gaveta dois livros de ficção. Até 2015, se o mundo ainda não tiver acabado, é possível que ambos ou pelo menos um deles me diga: estou pronto, chegou a hora de sair às ruas!


Maiores informações sobre o livro podem ser obtidas através do e-mail: palavrasmusicais@yahoo.com.br

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Pérolas aos poucos


Depois do estrondoso e ao mesmo tempo discreto sucesso do CD “Piano Voz” (MCD), lançado em 2005, o arranjador, compositor e multiinstrumentista André Mehmari e a cantora e compositora Ná Ozetti estão de volta. Eles, mais afinados do que nunca, chegam neste momento com novidades ao mercado fonográfico.

Saudado com entusiasmo tanto pela crítica quanto o público, o álbum – fruto de um projeto inicial bem sucedido da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ganhou recentemente um DVD, que traz a íntegra de todo o repertório do show mostrado pela dupla nas diversas capitais brasileiras.

Composta por pequenas delícias, como “Luz negra” (Nelson Cavaquinho/ Amâncio Cardoso), “A Ostra e o vento” (Chico Buarque de Hollanda), “Perolas aos Poucos” (Zé Miguel Wisnik/Paulo Neves), “Because” (Lennon/McCartney), “Rosa” (Pixinguinha/Otávio de Souza), a salada musical de ambos combinava delicadeza, emoção e virtuosismo da melhor qualidade.

O pacote, embalado no formato DPAC, cuja arte gráfica é assinada pelo talentoso e consagrado Gal Oppido, traz ainda um novo CD contendo quinze faixas inéditas de rara beleza. Puro supra-sumo de encantos sonoros.

Maturidade & Ousadia

André Mehmari explica a gênese do trabalho nascido de forma despretensiosa em 2004. “Desde os primeiros ensaios e encontros a gente já sentia uma afinidade musical muito grande. Uma vontade de unir vozes e intenções musicais. Percebemos que o trabalho seria registrado num CD”. O músico relata que ao longo de todo o percurso da dupla houve um aprofundamento com os arranjos e uma relação de intimidade com a concepção musical do projeto.

“Queríamos trazer o clima do álbum para o DVD. Muitos desses arranjos originais foram amadurecidos, retrabalhados, reorganizados durante a turnê nacional que a gente fez. Eles estão vivos e permanecerão vivos na medida em que nunca os tocamos da mesma forma. Eles se mostram novos para a gente”, explica.

Ná Ozetti reforça o pensamento do parceiro. “O trabalho está num momento mais maduro. O que a gente vê no vídeo é o resultado de pelo menos um ano de trabalho constante. Era um momento em que estavam nascendo novos arranjos e interpretações”. A fala da dupla foi registrada durante entrevistas contidas nos extras do disco.

Matemática de sentimentos

O DVD dá continuidade a sonoridade densa e introspectiva que marcou o show “Piano e Voz”. As imagens foram captadas durante quatro dias e quatros noites no Teatro Santa Cruz, em São Paulo, em abril do ano passado, com e sem a presença do público.

Há qualquer coisa melancolicamente tropical que atravessa as 18 canções, que emergem nas imagens protagonizadas pela dupla, que pode ser sentida na agonizante “Clube da esquina” (Milton Nascimento e Márcio Borges), em “Ciúme”, momento feliz de um Caetano Veloso inspiradíssimo ou ainda na memorável “Luz negra” (Nelson Cavaquinho/Amâncio Cardoso).

A escolha do repertório parece pinçada a dedo. Vale lembrar “Asturiana” (Manuel de Falla), “Copla de Ordeño” e Cuitelinho (Folclore recolhido por Paulo Vanzolini e Antonio Xandó). Está, inclusive, já eternizada por Nara Leão (1942-1989), mas que aqui, soa honesta e com naturalidade. Sem contar com a releitura ensolarada de “Suíte Gabriela”. Mais uma daquelas brejeirices musicais tão ao gosto do autor, Tom Jobim.

Enquadramentos, ângulos e iluminação privilegiam o momento intimista de André Mehmari e Ná Ozzetti em quase 1h 30 de puro êxtase singelo e atemporal. De quebra, making off e entrevistas.

Reforços

O mesmo acontece com o novo CD. Por manter a mesma integridade musical, seja nos arranjos ou no repertório, nada se perde, somando-se ao álbum anterior, em nível e qualidade. Basta deixar atentos os ouvidos e viajar.
Todas as canções foram gravadas em um estúdio montado sobre o palco do teatro, sem a presença do público, privilegiando um tempo próprio, interior, que desabrocha em beleza, forma e conteúdo.

A dupla recebe reforço de mais feras nas faixas “Eternamente” (André Mehmari/Rita Altério), “Sonho Além” ((André Mehmari/Luís Tatit) e “Pra dizer adeus” (Edu Lobo/ Torquato Neto). Elas atendem pelos nomes de Sérgio Reze (bateria) e Zé Alexandre Carvalho. De joelhos, nós agradecemos emocionados e enternecidos.