Milton Nascimento soltou sua voz negra pelas estradas do País e do mundo há quatro décadas. Foi em 1967, que aquele rapaz tímido e de violão em punho decolaria para uma carreira singular, entrecortada por sucessos, fracassos, desejos, parcerias, amizades e muita, muita vontade de alargar seu canto.
Desde então cruzaram no ar as chispas de sua rebelião musical, cegando, com a quentura de sua força humanística, os mais céticos dos homens, como “Clube da Esquina”, “Fé cega, Faca amolada”, “Morro velho”, “Maria, Maria”, “Fazenda”, “Tarde”, entre outros.
Mas afinal, como sondar uma personalidade tão marcante para toda a música do século XX? Foi essa a interrogação que se fez a jornalista belorizontina Maria Dolores, criada em Três Pontas, terra adotiva de Bituca.
Mais do que tudo era preciso tocar o homem, separá-lo do mito. Voltar as suas origens mais remotas. Sugar-lhe a seiva. Embriagar-se de sua obra repleta de sons, palavras e sangue. Ouvir histórias alegres, sombrias embaçadas pelas mãos de um tempo que parece nunca ter se extinguido.
Por isso, Maria Dolores se entregou a uma maratona de entrevistas com o próprio biografado, artistas, amigos e pessoas próximas. Sem sair ilesa desta viagem, ela decidiu torná-la pública, lançando o livro “Travessia – A Vida de Milton Nascimento” (Editora Record, 422 pág.), que chegou às livrarias no final do ano passado.
A obra traça o painel do menino de vida simples nascido no bairro fluminense da Tijuca, seu encontro com a música, a juventude nos bailes da vida em Três Pontas, as crises pessoais, as discriminações raciais que sofreu, a carreira consagrada no Brasil e no exterior, enfim, está tudo registrado lá.
Maria Dolores decidiu assim jogar luzes sobre fatos reveladores da vida e da obra do artista, sem, contudo, cair na fofoca pueril. Mais do que isso, ela optou por nos revelar os sincretismos de que são feitos a música de Bituca (mistura de jazz, blues, rock e música latina) e seus temas preferidos, Minas Gerais, a negritude, a amizade e o cristianismo.
O “Nada Será Como Antes” publica entrevista exclusiva com a autora, realizada via-mail, diretamente de sua casa, no bairro de Pinheiros, na capital paulista. Leia o texto na íntegra abaixo:
- Como surgiu a idéia de escrever o livro?
- Surgiu na faculdade. Eu fazia Comunicação Social (Habilitação Jornalismo) na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em Belo Horizonte, quando me deparei com aquela situação de todo estudante: escolher um tema para o Trabalho de Conclusão de Curso. Eu queria fazer algo sobre Três Pontas, minha querida cidade, e acabei escolhendo fazer um livro reportagem sobre o personagem mais ilustre, o Milton Nascimento. Daí eu o encontrei um dia, por acaso, em Três Pontas, e pedi uma entrevista para o trabalho de escola. Ele concordou. Quando fui entrevistá-lo, seis meses depois, eu já havia feito bastante pesquisa e descoberto o quanto a história dele era linda, incrível, e que nunca tinha sido contada. Resolvi, com o ânimo e confiança comum aos estudantes, escrever a primeira biografia do Milton. E pedi mais entrevistas, ele concordou, na hora, sem fazer qualquer objeção.
- Sabe-se que você realizou um árduo processo de composição da obra, entrevistando, além do próprio biografado, dezenas de amigos, familiares e artistas ligados a ele. Como foi ter vivido todo este período?
- Foi maravilhoso. É um trabalho intenso, as viagens, as próprias entrevistas, depois transcrever tudo, cruzar as informações, ver o que falta... Mas foi muito bom, eu me diverti bastante e aprendi muito. Só de conviver com essas pessoas, ouvir suas histórias já é uma grande conquista. Estar cara a cara com o próprio Milton, o Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil... Pessoas das quais sempre ouviu falar, viu na TV, nos discos e, de repente, estão ali, diante de você, abrindo seu coração, suas lembranças. Foi muito bom.
- Você nasceu em Três Pontas, cidade adotiva de Milton Nascimento. Isso facilitou um pouco as coisas na hora de captar a essência do seu universo artístico?
- Na verdade eu nasci em Belo Horizonte, fui para Três Pontas aos 2 anos e gosto tanto de lá que acho que eu não seria quem sou nem teria conquistado as coisas que conquistei se não tivesse crescido lá. Mas, enfim, voltando à pergunta, é claro que facilitou. Não para captar o universo artístico, que vai muito além dos limites dessa nossa pequena cidade, mas para compreender a história, as origens do Milton, os detalhes que tanto enriquecem essa linda trajetória. Eu me senti, o tempo todo, personagem também, e assim é muito mais fácil entrar no texto, e escrevê-lo.
- Bituca é um dos maiores artistas do planeta terra. Você acha que os próprios brasileiros sabem a real dimensão do seu trabalho enquanto músico, compositor e cidadão?
- Ele é muito reconhecido, tanto no Brasil quanto no exterior, mas não é um artista que está o tempo todo na mídia e com isso muita gente aqui não tem imagina a dimensão do trabalho dele e dele como personagem. Espero, e foi o maior motivo pelo qual escrevi esse livro, ter contribuído para que essa história genial, cheia de conquistas, dramas, superações e magia seja mais conhecida, chegue aos ouvidos e cantos desse imenso país, que o Milton tanto ama.
- O livro toca em temas delicados de sua vida pessoal, como a sua péssima formação musical durante a infância e revela sua ligação difícil com seu único filho, Pablo. Romper a folclórica timidez de Bituca foi um desafio enfrentado por você para chegar até estes momentos de sua vida?
- Foi tudo uma grande surpresa pra mim. Primeiro, em ele conceder a entrevista, depois em chegar no primeiro dia, com muito receio de que ele não fosse falar nada, e ver ele contar histórias por três horas, sem parar. Não tive nenhum problema nesse sentido. Fiz todas as perguntas da mesma forma, e ele respondeu todas, sem hesitar, mesmo quando não era um assunto do qual gostava muito de falar.
-Tratando-se de uma biografia autorizada pelo retratado, você não teve medo de que o trabalho viesse a sofrer cortes ou censuras do próprio?
- Não, porque ele foi muito generoso comigo. Acho que, quando se propôs a falar, quando viu que eu faria a sua biografia, decidiu se abrir. Ele agiu durante todo o trabalho como ainda tem agido: a vida é dele, mas o livro era um trabalho meu, que eu fiz sozinha, sem patrocínio, nada, e ele respeitou isso sempre. Poderia ter criado um caso qualquer, feito uma objeção, uma exigência, censura, mas não fez. Nem pediu para ler o livro, foi em quem mandei pra ele. O Milton é uma pessoa muito especial, única.
- Você analisa todos os discos e músicas compostas ou interpretadas por Milton Nascimento. Caso um ouvinte fosse para uma ilha deserta, qual destes trabalhos você indicaria para que o mesmo levasse?
- Não é bem uma análise, mesmo porque não sou música e não tenho muitos mecanismos para analisar, ainda mais as músicas do Milton. O que eu fiz foi retratar como as músicas e discos foram feitos, em homenagem a quem, com qual inspiração, por quê... Eu indicaria “Milagre dos Peixes”, de 1973, é um disco maravilhoso e tem algo a ver com essa história de ilha deserta, lembra isso, estar isolado, cercado por uma imensidão. Esse disco teve quase todas as letras censuradas. Para não deixar de gravar as músicas o Milton vocalizou as melodias, sem letra, só a voz. Apenas uma música ficou com letra. É lindo.
- Quais são os resultados que você destacaria desta sua experiência jornalística?
- Eu aprendi muito, certamente. Primeiro, que você precisa planejar um grande trabalho e nunca se contentar com a informação. Buscar os detalhes, isso é fundamental, porque são os detalhes que dão a cor da história, que fazem o leitor se imaginar nela, vivenciá-la. Eu aprendi muito mesmo, e outra coisa importante é não se intimidar pelo tamanho do trabalho, pela inexperiência. Se você se dedicar, tiver paciência, disciplina e procurar orientação com quem tem mais experiência, nada é impossível. Como não foi impossível fazer uma biografia, dessa complexidade, para uma jornalista estreante, que nunca teve um emprego, pois até hoje só trabalhei em estágios ou fazendo free-lancer, sem nome ou qualquer outra referência senão a vontade de fazer o trabalho, bem feito.
- Afinal, o Clube da Esquina teria conseguido ser reconhecido com um dos maiores movimentos musicais do século XX, sem a presença de Milton Nascimento?
- Os outros músicos do Clube que me perdoem, mas não. Quem decidiu reunir esses músicos para fazer um disco, e não um movimento musical (pois Clube da Esquina foi um disco do Milton) foi o Milton Nascimento, que depois ainda fez o álbum “Clube da Esquina Dois”. É claro que esses músicos maravilhosos teriam trilhado seus caminhos de qualquer maneira, mas o Clube da Esquina só aconteceu por causa do Milton, que também foi o responsável por levar essa música para toda o Brasil e para o mundo. Dizer que isso não é verdade, é ir contra a realidade.
- Dá para relatar qual foi o real papel da mãe adotiva de Bituca em toda a sua formação e como isso se refletiu em sua obra?
- Ela foi a grande inspiração do Milton, a grande companheira, o seu guia, o seu ídolo. Dona Lília amou muito o Bituca e todo esse amor refletiu nele a vida toda, e transparece em sua obra. Agora, ao contrário do que já se disse, ela não era professora de piano, nem era música, embora tenha feito aulas de piano e cantasse na quermesse. Nem o pai. Quem era professora de piano e, talvez venha daí a confusão, era a mãe do Wagner Tiso. O Milton é autoditada, a música nasceu dele sem que ele tivesse tempo de perceber. E ainda é assim, é algo que flui. Não consegui, em toda a pesquisa, encontrar outra explicação.
- Qual será sua próxima empreitada jornalística ou literária?
- Eu tinha começado a escrever um romance quando resolvi fazer a biografia. E por isso optei por escrever o texto em forma de romance, protagonizado pela figura incrível do Milton. Agora retomei o romance, espero ter tempo para terminar. Apesar de que, se a gente tem vontade, o tempo aparece de alguma forma.