quinta-feira, 5 de abril de 2007

Sons Eternos


Severino Dias de Oliveira saiu de cena como entrou: de cabeça erguida. Sanfoneiro, arranjador, instrumentista e compositor, o paraibano Sivuca (1930-2006), como ficou popularmente conhecido, empreendeu uma viagem pelos sons mais originais e ricos da recente história da música nordestina.

A quem interessar possa, basta conferir o dvd “O Poeta do Som” (Gravadora Kuarup). Produzido pela esposa do mestre, a cantora e compositora Glória Gadelha, as imagens captam um Sivuca musicalmente maduro, acompanhado por 12 conjuntos musicais paraibanos, durante uma apresentação ao vivo, no Teatro Santa Rosa, João Pessoa, em julho de 2005.

O dvd, que foi lançado no final do ano passado na Paraíba (PB), só agora ganhou edição comercial em todo território nacional. Trata-se do único registro audiovisual de Sivuca. Um momento de rara beleza criativa que flagra o mestre mergulhado no universo da música erudita e instrumental.

Convidados

Para compor o repertório de canções do dvd, praticamente o mesmo de seu último álbum de estúdio, “Terra Esperança” (Kuarup, 2006), Sivuca convidou doze grupos paraibanos distintos (camerata, quinteto de cordas, big band, sexteto de trombone, quinteto de sopros, quarteto de sax, quinteto de metais, orquestra sinfônica, grupos de jazz, choro e forró pé de serra).
São eles: Quinteto da Paraíba, Quinteto Uirapuru, Camerata Brasílica, Quinteto Latinoamericano de Sopros, JP Sax, Brasilian Trombone Ensemble, Sexteto Brassil, Valtinho e Poty Lucena, Banda amigos do Sivuca, Clã Brasil, Metalúrgica Filipéia e Orquestra Sinfônica da Paraíba. Além da participação de Glória Gadelha, parceira eterna, que soltou a voz em duas canções.

“Para mim, é o momento culminante na minha carreira. É uma satisfação grande, que eterniza tudo isso aqui na nossa Paraíba”, revela profeticamente Sivuca no disco, momentos antes de pisar no palco do histórico Teatro Santa Rosa.

Transes

Sivuca procurou concentrar uma infinidade de ritmos, valsa, samba-choro, forró, jazz brasileiro, modinha, baião, que buscam unir o popular e o erudito. Tudo embalado pelo suingue e improviso do mestre de pele e barba alvíssimas como nuvens. A magia cresce com o cenário alegre e exuberante que traz as cores fortes do Nordeste.

O mestre abre o show com a bela e lírica “Quando Me Lembro” (Luperce Miranda). Número solo que mostra um transe musical atemporal. O velho-novo artista com muita concentração, olhos fechados e dedos afoitos a dedilhar sua sanfona.
A festança prossegue com o baião alegre “Amoroso Coração” (Glória Gadelha), com o Quinteto da Paraíba, a tocante e pungente “A Doce Canção de Nélida”, com a Camerata Basílica, e “Comigo Só”, com Quarteto Uirapuru - ambas de Sivuca e Glória Gadelha.

Momento especial também em “Mãe-Africa” (Sivuca/Paulo César Pinheiro), com o Sexteto Brasil, em que o sanfoneiro faz uma releitura do clássico upakanga [ritmo originário da África do Sul], lançado há quase trinta anos, no álbum “Sivuca” (1978).

Sobra ainda o dueto fenomenal das sanfonas do paraibano e de Valtinho em “De Bom Grado” (Sivuca/Glória Gadelha). Arretada canção que tem como destaque a presença de Poty Holanda de Lucena no contrabaixo e Vilberto Soares na bateria. Sem falar, claro, da melancólica “Um Sol Em Mim” (Thaise Gadelha), canção onde o sertão se faz mais profundo.

O espetáculo prossegue com o telúrico arrasta-pé “Visitando Zabelê” (Sivuca/Glória Gadelha), com Clã Brasil, e “Terra Esperança” (Glória Gadelha/ Marilena Soneghet), trazendo a presença da sensacional Metalúrgica Filipéia, entre outras.

Voz e violão

Gloria Gadelha faz uma canja no final do espetáculo com sua “A Vida é Uma Festa”, parceria dela com o ex-Novos Baianos, Moraes Moreira. Voz e violão são acompanhados pela sanfona de Sivuca, Rucker Bezerra (1º violino), Marina Marinho (2º violino), Samuel Spinoza (viola), Kalim Campos (violoncelo) e Hercílio Antunes (contrabaixo). Em seguida, a compositora contagia a todos com a interpretação da valsa “João e Maria” (Sivuca/Chico Buarque), jóia rara da MPB, que ganha ritmo de frevo, com a presença do grupo Nossa Voz.

Clímax

Entretanto, o clímax do dvd fica por conta dos extras, que além do making off do show, traz mais dois números antológicos do mestre Sivuca. Desta vez acompanhado pela Orquestra Sinfônica da Paraíba.

Sob a regência do maestro Luís Carlos Duriê, o sanfoneiro mais uma vez surpreende com sua polivalência, talento e criatividade estilística. “Aquariana” (peça feita por ele para Glorinha) arrebata todos os presentes. O ciclo se fecha com “Feira de Mangaio” (Gloria Gadelha/Sivuca). Final apoteótico que nós presenciamos com olhos mareados.

Legado

As imagens registradas em “O Poeta do Som” comprovam a preocupação de Sivuca com a crescente evolução de sua música, voltada cada vez mais para o intimismo da música erudita e instrumental brasileira, sem com isso, abrir mão de sua marca fortemente popular e brejeira.
Este equilíbrio foi bem explicitado pelo próprio artista numa entrevista dada em 2004, ao site Gafieiras. “Estou integrado ao mundo e à família dos músicos chamados eruditos. Porque a música, essa história de erudição e de clássicos, são rótulos que vêm com o tempo, mas na realidade a música é dividida em duas: a boa e a ruim”. Este era o juízo de quem sabia exatamente onde queria chegar.

Sivuca passou pela escola da sanfona brasileira (Luiz Gonzaga, Mario Zan, Mário Gennari, Orlando Silveira, Dominguinhos) para depois beber na fonte de compositores eruditos nacionais (Heitor Villa Lobos, Radamés Gnattali, Camargo Guarnieri e Guerra Peixe). Criou sons endiabrados e eternos.

Foram mais de 50 discos lançados, entre arranjos, parcerias, composições etc. Alguns títulos tornam-se verdadeiros monumentos, bastaria citar “Sivuca e Rosinha de Valença” (1977), “Africanismo – Duo Negro & Sivuca” (1959) e “Chiko´s Bar – Toots Thielemans & Sivuca” (1986).

Uma carreira que começou de forma tímida, aos 15 anos de idade, mas ganhou o planeta. Seu trabalho alcançou momentos únicos ao lado de Benny Goodman, Mirian Makeba (autora da irrestivel sucesso internacional “Para-Pata”), Harry Belafonte e Marcel Marceau. Chegando a arrancar um elogio inusitado de um admirador famoso, o genial Miles Davis, então encantado pelo feddbak de Sivuca.

A morte do artista, ocorrida em 14 de dezembro de 2006, depois de mais de três décadas de luta contra um câncer na laringe, aos 76 anos de idade, finalizou uma das mais virtuosas trajetórias musicais brasileiras. Este “O Poeta do Som”, serve como uma celebração do artista com a vida, o amor e a arte. Documento histórico para gerações presentes e futuras. Saravá, Sivuca

Um comentário:

Billy Rogetti disse...

Rapaz, que beleza... Esse DVD do Sivuca é de respeito!