Se por um lado a História nos conta que foi o navegador português Pedro Álvares Cabral o responsável pela descoberta do Brasil dito oficial, por outro, é preciso levar em conta que foi um brasileiro, o carioca Sérgio Cabral, de mesmo sobrenome, quem trouxe à tona uma parte de um Brasil não oficial, por isso mais profundo, ao conhecimento do seu povo.
Naquele, o país das oligarquias, da corrupção, da falta de dignidade, do descaso e da canalhice. Neste, uma nação de gente simples, a maior parte negra e excluída, cheia de arte, talento e muito samba no pé. Morro e asfalto. Universos paralelos que teimam em se cruzar e se negar em nosso dia-a-dia.
Misturado à geléia geral brasileira, Sérgio, que completa 70 anos de idade no próximo mês de maio, vai compondo sua trajetória de lutas e alegrias. Suas facetas, diga-se de passagem, são muitas: jornalista, pesquisador, crítico e colunista da MPB, ator, compositor, diretor e produtor musical, escritor e político.
Qual delas escolher? O Sérgio jornalista, um dos criadores do Pasquim (1969), o mais subversivo e bem humorado periódico brasileiro? Quem sabe o Sérgio divulgador de talentos esquecidos, tais como os sambistas Mano Décio da Portela, Candeia, Cartola, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho e Zé Keti? Tem também o Sérgio político, que ocupou por três vezes uma vaga na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
Como esquecer aquele Sérgio amigo de gente querida, Jaguar, Ziraldo, Carlinhos Oliveira, Millor Fernandes e tantos outros? O Sérgio escritor, que publicou livros que perpassam os momentos iluminados de companheiros de jornada (Tom Jobim, Nara Leão e Pixinguinha)? Quem sabe o Sérgio outrora preso a mando da colérica e sangrenta ditadura militar pós 1968?
Poxa, são tantos os Sérgios. Bom mesmo seria ficarmos com todos, afinal, estão incorporados numa mesma personalidade já transformada em símbolo da cultura carioca e nacional.
Claro, não podemos deixar de citar o seu Rio de Janeiro tão amado, com suas histórias, suas esquinas, seus mitos, seus carnavais, seus calçadões à beira-mar, seus versos, melodias e harmonias que impregnaram sua vida, sua obra, suas amizades, seu infinito particular.
Sérgio não esqueceu o enredo de seu samba, procurando manter a fama de criador emperdenido. Enquanto prepara o lançamento de mais uma biografia, desta vez sobre o ator e comediante mineiro Grande Otelo, ele ainda encontra tempo para produzir reportagens especiais, prefácios etc.
São atividades que desenvolve paralelamente com a de conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, cargo que exerce desde 1993, garantido-lhe uma vida mais tranqüila depois de anos de trabalho árduo e momentos de instabilidade financeira.
Nascido no subúrbio de Cavalcante, criado em Cascadura, este nosso ipanemense de coração, no entanto, admite que seu ritmo diminuiu. Hoje prefere, quando sobra um tempo, ficar tomando uma boa água de coco no calçadão e curtir o carinho da esposa Magali e os filhos Sérgio, Cláudia e Maurício.
“Aliás, é impressionante que, depois de tantas décadas lidando com os setores mais populares da cultura do Rio de Janeiro, tenha passado a ser uma pessoa menos pública. A verdade é que não saio mais nos jornais, salvo excepcionalmente, e fico cada vez mais escondido. Acredite se quiser: estou feliz”, declarou Sérgio, durante depoimento registrado em livro da Coleção Gente (Editora Rio), em 2003.
Sua profecia, de que um dia seu filho, o também político e jornalista Sérgio de Oliveira Cabral Santos, chegaria a governar o estado do Rio de Janeiro, enfim se concretizou no começo deste ano. Quem sabe, este deva ser um daqueles momentos onde há um misto de felicidade e orgulho resguardados no fundo do seu coração.
Eu ali com o telefone na mão, quando do outro lado a voz faceira do mestre, naquela mesma Ipanema do poetinha Vinícius de Moraes, confirmando a entrevista via e-mail. As mãos suavam. O coração aos galopes. Suor no rosto. Como é difícil chegar perto de um mito. Tocá-lo.
Não sei, mas de repente me lembrei de uns versos de Cartola: “Fez-se alegria/Ah, corra e olha o céu/Que o sol vem trazer bom dia”. Sabe, era como se eu tivesse compartilhado por segundos daquela sua história rara e encantada. Fala aí, mestre!
- Como a música popular entrou na sua vida?
- Morava num bairro, Cavalcante, ao lado de Madureira, e, por causa disso, desde cedo convivi com o pessoal da Portela e do Império Serrano. Portanto, minha entrada na música ocorreu pela porta das escolas de samba. Depois, vieram outros tipos de música e um rápido aprendizado de violão e piano. Hoje, não toco nem um nem outro.
- Seus livros impressionam pela qualidade técnica e a riqueza de detalhes. Fale um pouco sobre o seu processo de criação e pesquisa.
- Antes de tudo sou repórter. Meus livros, na verdade, são grandes reportagens. E nas reportagens o detalhe é tudo.
- Para muitos, o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro não é mais o mesmo. Eles afirmam que as mudanças impostas, tanto com relação ao ritmo do samba, como o tempo do desfile, acabaram transformando a festa num espetáculo televiso e comercial. Afinal, o carnaval carioca perdeu um pouco de sua espontaneidade?
- Sem dúvida as escolas de samba mudaram, como a cidade, mudou, o país mudou e as pessoas mudaram. A escola de samba é um fenômeno urbano permanentemente aberto às transformações. Mas ainda são, sem dúvida, importantes manifestações da criatividade popular. Para o meu gosto, as escolas de samba dos anos 50 e 60 do século passado eram melhores. Os mais antigos do que eu dizem que não. Boas mesmo eram as escolas das décadas de 30 e 40. Não posso, portanto, exigir que os mais jovens tenham o mesmo gosto que tenho.
- Qual a sua análise da MPB? Destacaria algum nome em especial?
- O único problema da MPB é a divulgação. Os criadores estão aí, em quantidade e qualidade fantásticas, mas ignorados pelo rádio e pela televisão. Guinga, compositor pouco divulgado, é um dos melhores do mundo.
- Há pouco, o musical “Sassaricando – E o Rio Inventou a Marchinha”, escrito por você e a historiadora Rosa Maria Araújo, terminou uma temporada de sucesso no Rio de Janeiro. Queria que você comentasse um pouco este espetáculo e os motivos que o levaram a escrever o texto.
- Nélson Rodrigues dizia que o brasileiro não consegue enxergar o óbvio. O que Rosa Maria e eu fizemos, ao escrevermos um espetáculo sobre as marchinhas, foi descobrir o óbvio. Estou chegando de Curitiba, onde vi o teatro Guairá, de mais de dois mil lugares, sem uma cadeira vazia e o público aplaudindo de pé.
- O senhor foi um ferrenho agitador político, encabeçando movimentos e publicações esquerdistas, como o CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) e o semanário Pasquim. Passados mais de 40 anos do golpe militar, qual o balanço que você faz da esquerda brasileira, hoje? Está satisfeito com o governo de Luís Inácio Lula da Silva?
- Por enquanto, sou conselheiro do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, impedido por lei de emitir opiniões políticas publicamente, o que me impede de responder a perguntas políticas, incluindo a que envolve o governo Lula.
- Hoje, em razão da violência, o morro e cidade vivem um drama particular. Na década de 60, o diálogo entre ambos gerou uma riqueza cultural incomensurável para o país. Basta citarmos Cartola, Zé Kéti e Clementina de Jesus. O senhor acredita que isto possa se repetir novamente?
- Vinte anos de ditadura militar fez do Brasil um dos países mais injustos com o seu povo. O Rio de Janeiro foi a cidade que pagou mais caro por isso, por ver crescer nos morros e nas favelas uma população que chegou à cidade de todo o Brasil sem a menor condição de atendimento. Ou seja: sem empregos, sem serviços públicos, sem nada. Mas o samba continua forte. Zeca Pagodinho que o diga. Aliás, chamo a atenção para um conjunto de samba surgido recentemente no Rio chamado Galo Cantou. Vale a pena conhecê-lo. É bom não esquecer que Paulinho da Viola, Chico Buarque, Aldir Blanc, Luís Carlos da Vila, Nei Lopes, Martinho da Vila e tantos outros são cariocas.
- Nara Leão sempre foi uma mulher à frente de seu tempo, engendrando em si várias facetas. A beleza e o pensamento. O morro e a zona sul fluminense. Por que até hoje, tanto por parte da crítica, como do público, seu nome parece renegado a um segundo plano?
- Nara está esquecida, como estão esquecidos vários nomes que desapareceram da chamada mídia. Recentemente, foi feita uma pesquisa em Nova York que constatou, entre outras coisas, que menos de 15 por cento da população conhece Louis Armstrong e Duke Elington, os dois maiores nomes do jazz americano.
- Você travou contatos pessoais com Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Pixinguinha e muitos outros gênios musicais, que acabaram se transformando em temas de seus livros. Como separar o mito do homem nestas situações?
- Escrever biografia é, entre outras coisas, separar o ser humano do mito. É isso que tento fazer nas biografias que escrevo.
- Caso estivesse vivo, Antonio Carlos Brasileiro Jobim, o Tom, faria 80 anos este ano. O senhor acredita que sua obra tem o devido respeito que merece entre os brasileiros?
- Dos compositores que, infelizmente, já morreram, Tom Jobim é um dos únicos que ainda é lembrado uma vez ou outra.
- Poderia citar cinco sambas essenciais que todo bom amante do gênero musical não poderia deixar de ouvir?
- Cinco sambas? Poderiam ser 200. Mas vamos ao cinco: Com que roupa (Noel Rosa), Pra machucar meu coração (Ari Barroso). Ai que saudades da Amélia (Ataulfo Alves e Mário Lago), Falsa baiana (Geraldo Pereira) e Vai passar (Francis Hime e Chico Buarque).
- Como foi ter escrito sua própria autobiografia?
- Não escrevi minha autobiografia. Concedi uma longa entrevista, transformada em livro.
- Você tem algum projeto que gostaria de destacar para este ano?
- Acabo de escrever uma biografia de Grande Otelo, que espero seja lançado no próximo mês de maio, quando completarei 70 anos de idade.
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