Ok, quantos de nós já se viu cantando ou assobiando uma canção de amor ou de teor sexual na vida? Pois é, elas estão aí nas vozes e letras de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Odair José, Chico Buarque, Wando, Dalva de Oliveira, Noel Rosa, Rita Lee (ufa, a lista é grande!).
Foi para tentar repensar todo este amplo universo é que o pesquisador e jornalista Rodrigo Faour decidiu rebobinar cerca de 1.300 músicas do cancioneiro brasileiro, analisando-as passo a passo. O resultado deste trabalho vem agora a público através do livro “História Sexual da MPB - A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira”, que chegou recentemente às livrarias do País.
Com uma linguagem informal e direta, Faour evita a aridez do academicismo, preferindo valorizar ambos os temas por meio das mais variadas conjunturas sociais e culturais nos quais as canções foram compostas e interpretadas. Um arco que começa no XVIII chegando até os nossos dias.
A obra ganha valor referencial ao abordar nuances pouco ou quase nunca estudadas na Música Popular Brasileira, como, por exemplo, o machismo, a misóginia, o homossexualismo, o amor romântico e idealizado e o tesão. Em resumo: um portentoso estudo das transformações comportamentais, afetivas e sexuais dos brasileiros.
De sua residência no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, Rodrigo Faour concedeu uma entrevista exclusiva, via e-mail, que publicamos pela primeira vez no “Nada Será Como Antes”. As respostas sempre objetivas e coalhadas de nuances, dadas pelo jornalista e pesquisador, fizeram com que nós, ciosos de nos manter fidedignos ao seu pensamento, evitássemos quaisquer cortes.
Sim, caríssimos leitores, não é todo dia que se encontra alguém que tenha o que dizer de verdade. Abram alas, pois Rodrigo Faour vai passar!
- Como surgiu a idéia de escrever História Sexual da MPB - A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira?
- Partiu da minha amizade com a sexóloga Regina Navarro Lins, que conheci há quase 10 anos, quando ainda era repórter da Tribuna da Imprensa (RJ). Fiz uma matéria de capa do caderno cultural com ela e me apaixonei pela sua visão libertária sobre temas de amor e sexo, por pura identificação. Eu também tinha umas idéias meio diferentes a respeito desses temas, que vieram a se ampliar ainda mais depois que a conheci. Fato é que a admiração foi recíproca e ficamos amigos. Em 2002, ela tentou emplacar uma revista sobre sexo chamada “Muito Prazer”, que infelizmente não passou do segundo volume. Nesta revista, ela me convidou para escrever uma coluna chamada “O amor na MPB”, na qual me sugeriu que eu fizesse justamente uma análise de como certos temas, tipo o da separação, eram vistos por nossos compositores no começo do século e hoje em dia; quem falou de uma forma mais libertária do tema e quem continua insistindo no peso do amor romântico idealizado. Era uma idéia excelente e pensei na ocasião: “Puxa, depois de uns dois anos de revista, eu poderia reunir essas crônicas todas num livro”. Como a revista não foi adiante, eu decidi não desperdiçar esta idéia e transformá-la num livro logo de uma vez.
- O livro analisa o amor e o sexo no cancioneiro brasileiro desde a maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1827-1935) à funkeira cantora carioca Tati Quebra Barraco, num total de 1.300 músicas analisadas. Como foi realizar tal pesquisa?
- Na verdade, eu regressei bem mais no tempo. O livro começa no século XVIII com o nosso primeiro compositor a fazer uma mú
sica que podemos chamar de popular brasileira, da forma que conhecemos hoje, o Domingos Caldas Barbosa. E vem até hoje, não só retratando a Tati como outros funkeiros e também artistas da MPB mais tradicional. Há canções citadas no livro compostas entre 2005 e 2006 dos novos CDs de Caetano Veloso, Marina e Martinho da Vila, por exemplo. Como dediquei boa parte dos meus 34 anos à música brasileira, já tinha uma certa intimidade com seus mais variados gêneros, então tratei de pesquisar a parada de sucessos, ano a ano para não esquecer de nenhuma canção importante, viajar na minha memória afetiva de tantas canções e pesquisar gêneros os quais eu não tinha tanto conhecimento, como as músicas do início do século XX e dos séculos XVIII e XIX, tais como modinhas, lundus, maxixes e cançonetas de inspiração francesa. Depois classifiquei-as em temas e fui enquadrando-as em cada um dos sete capítulos idealizados por mim (O amor mal-resolvido; a mulher; o gay; a sensualidade; o duplo sentido e a sacanagem; o maxixe & o funk; e os transgressores em geral). Muita coisa ficou de fora, privilegiei as de maior sucesso ou as de letras mais curiosas que espelhassem melhor a evolução das mentalidades em relação ao nosso comportamento afetivo e sexual dos últimos 250 anos.
- Por que você decidiu privilegiar as letras das canções e não seu valor estético?
- Se eu fosse partir por uma linha de só citar músicas bem feitas, melodiosas, e com um tipo de poesia tida como de bom gosto, seria preconceituoso e falaria apenas da evolução de comportamento da classe média-alta bem pensante. Quis fazer um estudo mais abrangente e por isso fiz questão de citar fartos exemplos dos estilos mais populares, que em geral costumam ser os mais picantes, pois na classe mais pobre o sexo sempre foi encarado de uma forma mais natural até do que na classe média-alta, ainda que todos os estratos sociais sempre tenham gerado algum tipo de preconceito sexual nos mais variados momentos de nossa história.
- O livro mostra que amores sofridos, machismo e misógina sempre estiveram presentes dentro da MPB. Para você, estes preconceitos e lugares comuns tendem a desaparecer com o tempo ou permanecerão como temas de nossos compositores?
- Eu adoraria responder que sim, mas a humanidade é tão atrasada... Quando a gente pensa que ela vai andar pra frente, dá três passos para trás. Muita coisa mudou e muita coisa permanece igual, como nos primórdios da humanidade. Também há uma variação de região para região em nosso próprio país com setores mais avançados e retrógrados. Fora que ainda hoje há uma diferença muito grande entre o que se faz e o que se fala. Continua um preconceito em assuntos de sexo e ainda hoje o homem sempre pode muito mais do que a mulher. O homem garanhão é valorizado e a mulher que gosta de muitos parceiros é vista como “galinha”. Homossexualidade ainda é tabu na maioria de nossas cidades, apesar de ser tão praticada... Se os avanços do movimento feminista e gay são irreversíveis, ainda assim me parece que durante um bom tempo ainda haverá muito preconceito e tabus com relação à nossa sexualidade. E a nossa música vai continuar documentando o que faremos daqui para frente. É viver para crer.
- Dá para você citar algumas canções ou discos fundamentais para se observar o sexo e o amor dentro da MPB? E afinal, para você estes dois temas estão sempre atrelados ou acontecem de forma separada?
- A última música citada no livro é a balada “Amor e sexo”, de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor, grande sucesso de 2003. Uma letra sensacional que justamente diz que amor e sexo podem andar juntos, mas são independentes. E muita água rolou na MPB até que essas duas grandezas fossem encaradas de forma separada, dando muito o que falar. Citar uma ou outra música é difícil, só lendo o livro. Cada capítulo fala das músicas mais importantes com relação à sensualidade, duplo sentido, do sexo gay, do homem, da mulher, erotismo, pornografia, enfim... São centenas de músicas importantes e representativas. Aleatoriamente posso citar três de gêneros totalmente distintos: “Da cor do pecado”, de Bororó, exemplo raro de sensualidade nos anos 30, “Cavalgada”, de Roberto & Erasmo, bela cena de cama dos anos 70, e “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, de Fausto Fawcett e Carlos Laufer, sobre uma prostituta poderosa em meio ao caos urbano carioca dos anos 80.
- Você parece fazer um elogio virtuoso e subversivo do lugar do feminino no mundo, através das letras de compositoras como Marina Lima, Joyce, Rita Lee etc. Afinal, o mundo está ficando mais feminino, mais poético (sem pieguismos) e cheio de infinitas possibilidades?
- Acho que estamos vivendo uma transição e tanto de costumes, pois o mundo mudou radicalmente em termos de comportamento nos últimos 30 anos. E a MPB prova isso. Ao invés de culpar a mulher por tudo que dava errado nos relacionamentos, como fizeram nossos compositores até o início dos anos 60, eles passaram nos 70 a vestir a sua camisa e falar de seus dilemas, problemas e de sua busca pelo prazer. Seja autores populares, como Odair José, Wando, Roberto & Erasmo, ou mais sofisticados como Gonzaguinha, Vitor Martins (com Ivan Lins), Aldir Blanc (com João Bosco), Fernando Brant (com Milton Nascimento), além de Chico, Caetano e Gil. As nossas compositoras também começaram a botar mais as manguinhas de fora - de Joyce, Fátima Guedes, Marina, Rita Lee e Ângela Ro Ro a Vanusa e Anastácia. Hoje, rola uma certa caretice no ar perto do que foi a MPB dos anos 70 e 80. Entretanto, vivemos - como já disse - um período de transição, de acerto de ponteiros. Depois de 5 mil anos de permanência do patriarcado no poder, o masculino está em crise, não sabe direito o seu papel. A mulher também ainda não sabe direito que homem ela quer. O gay também não sabe se quer ser a superfêmea ou o supermacho. Enfim, o mundo pode ter ficado mais feminino, mas a humanidade ainda está digerindo essa igualdade de direitos. E a MPB, de alguma forma, para o bem ou para o mal, é testemunha.
- Por que você decidiu explorar a temática gay no livro? Havia uma necessidade de explorar estas fronteiras quase sempre delicadas e cheias de tabus dentro da MPB?
- Claro. É preciso que o grande público - e não apenas o gueto homossexual - tome conhecimento de como canções de amor entre iguais ainda são pouco compostas e gravadas pelos nossos grandes intérpretes, ainda que tenhamos tantos artistas gays e bissexuais (não assumidos) na MPB. Existem muitas referências a personagens gays e lésbicos na MPB, principalmente a partir dos anos 70, mas as canções de amor bem resolvido, realizado, sensual e sem neurose entre iguais ainda são ínfimas. E isto me parece ridículo, visto que sempre fomos um povo dado a este tipo de sexo, desde o tempo do Brasil colônia. Não é por acaso que a epígrafe deste capítulo é o forró “Por debaixo dos panos”, gravado por Ney Matogrosso em 1982, que bem que poderia ser nosso Hino Nacional. Pois somos os reis da dissimulação.
- Quando Tati Quebra Barraco canta: “de ladinho a gente gosta/ se tu não tá agüentando/ pára um pouquinho/ tá ardendo/ assopra/ ou Dako é bom, Dako é bom/ calma é só marca de fogão”, não há de certa forma uma entrega como objeto do ser feminino ao discurso do mesmo, o homem?
- Acho que o neofunk carioca é pura diversão, pura sacanagem. Não dá para levar as coisas tão a sério. Os homens alfinetam as mulheres e elas respondem - às vezes com as mesmas armas dos homens. No fundo eles e elas só querem se seduzir e transar gostoso. São letras de pura libido adolescente, como já faziam Eduardo Araújo, Carlos Imperial, Erasmo Carlos e Renato e Seus Blue Caps na era da Jovem Guarda, ou Ultraje a Rigor, Blitz e Kid Abelha nos anos 80 e Raimundos nos anos 90. Só muda o ritmo, a época e a aspereza das palavras. Por outro lado, o neofunk pela primeira vez na música brasileira toca em alguns temas tabus, como o da mulher que releva a performance ruim do homem na cama ou de que a mulher não gosta tanto de sexo quanto o homem. Também já critica a guerra existente entre a mulher fiel e a amante de forma ultra-bem-humorada. Como diria Tati, “o tempo já é moderno e sexo tem que variar”. Atualmente, não acho o neofunk tão machista quanto se apregoa. É tudo uma questão de farra mesmo e as garotas sabem mais o que querem do que se possa imaginar.
- Você destaca nomes da atualidade que conseguiram de alguma forma se desvencilhar de certos chavões estereotipados do amor romântico, estabelecendo padrões de comportamento inovadores. Esta ruptura é importante em que medida para você?
- Não é que seja importante para mim, é importante, sim, para o Brasil inteiro (risos). Acho que falta agora a MPB mais intelectualizada e dita de bom gosto conseguir penetrar nesse campo e novamente transgredir - até de uma forma não tão adolescente, como no atual funk carioca, porém mais madura - certas questões sexuais e também abrirem a cabeça aos novos padrões de relacionamento afetivo entre as pessoas. As velhas balelas que o amor romântico prega: “amar até que a morte os separe”, “só é possível ter tesão por uma pessoa de cada vez”, “a traição é pecado mortal”, “o homem gosta mais de sexo que as mulheres” etc, tudo isso já está caindo por terra na vida real e na música brasileira parece que, entre os jovens autores, só a turma do funk percebeu isso. Resta rezar para que o padrão do pop/romântico e pop/light das FM imposto pela indústria, e que o nível de senso crítico de nossos letristas mais intelectualizados permitam que esses assuntos deixem de ser tabus e sejam também retratados numa MPB mais sofisticada, e não apenas na ultra-popular criada na periferia. Nossa língua portuguesa é sensacional e nosso cancioneiro tem um histórico espetacular de cronista nos assuntos de amor e sexo. Espero que as novas gerações levem adiante este bastão também no campo da ousadia em nossa música, porque na vida real os relacionamentos já estão mudando muito.
- A seu ver, há diferenças (de intensidade e forma) a serem destacadas entre as letras das canções de amor e sexo ditas “clássicas” (Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil) e as “bregas” (Wando, Odair José e companhia)?
- Na maior parte das vezes a suposta breguice da música está ligada ao fato de como ela é interpretada e no arranjo musical da mesma. Há incontáveis exemplos de músicas de Peninha, Odair José, Roberto Carlos e outros que quando são regravadas por um Caetano, uma Gal ou uma Bethânia viram outras canções. Em geral, o segredo está na intenção da interpretação - vocal e instrumental - mais do que em qualquer outro atributo musical.
- Gostaria que comentasse sobre o trabalho realizado por você na reedição de toda a discografia da cantora baiana Maria Bethânia este ano. Há outros nomes que necessitariam de um mesmo resgate?
- Tenho feito um trabalho bacana de reedições e compilações de grandes nomes da MPB da Era do Rádio e da turma que começou na MPB nos anos 60 e 70. Dou atenção especial aos encartes, sempre incluo textos informativos e se faço coletâneas dou importância à seqüência, para não virar um saco de gatos. A música brasileira é um baú sem fundo, e sempre haverá o que se resgatar e reciclar. No caso da Bethânia, trouxe de volta uma discografia essencial e que os fãs estavam desesperados para terem em CD do jeito que ela merecia ser reeditada com capas e encartes originais, todas as letras e informações de bastidores sobre cada álbum. Sou minucioso e perfeccionista, e acho que por isso Bethânia me autorizou a reeditar a sua obra inteira, num ano em que ela já tinha vários produtos no mercado ou ainda por lançar. Foram 34 cds em 3 gravadoras, vendidos de forma avulsa. Consegui realmente um feito inédito na indústria fonográfica. Nem eu mesmo sei como consegui. Acho que neste caso Mãe Menininha do Gantois ajudou lá de cima (risos).
- Quais são seus planos para o futuro?
- Em termos de livro, não pensei ainda. Estou digerindo este ainda. Quero que as pessoas o leiam muito e reflitam até sobre suas próprias vidas afetivas e sexuais. Em termos de CDs, tenho vários por lançar. Acabaram de sair duas coletâneas duplas lindas produzidas por mim, uma em homenagem aos 65 anos do Tremendão (“Erasmo 65 - Na Estrada”) e outra com gravações inéditas em CD de Claudette Soares (“A bossa sexy de Claudette Soares”), em que privilegio o tipo de bossa que ela gravou no auge da carreira, entre 1967 e 1971, um misto de samba-jazz, bossa nova, pilantragem e samba-rock muito moderno. Os próximos lançamentos são 13 CDs da série “As Divas”, da Warner Music, resgatando velhos vinis gravados na Continental e na Chantecler por grandes cantoras, como Emilinha Borba, Doris Monteiro, Isaurinha Garcia, Carmen Costa, Ângela Maria, Aracy de Almeida, Helena de Lima, Ana Lúcia e Vanusa. O resto é segredo! Me aguardem! (risos).
Foi para tentar repensar todo este amplo universo é que o pesquisador e jornalista Rodrigo Faour decidiu rebobinar cerca de 1.300 músicas do cancioneiro brasileiro, analisando-as passo a passo. O resultado deste trabalho vem agora a público através do livro “História Sexual da MPB - A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira”, que chegou recentemente às livrarias do País.
Com uma linguagem informal e direta, Faour evita a aridez do academicismo, preferindo valorizar ambos os temas por meio das mais variadas conjunturas sociais e culturais nos quais as canções foram compostas e interpretadas. Um arco que começa no XVIII chegando até os nossos dias.
A obra ganha valor referencial ao abordar nuances pouco ou quase nunca estudadas na Música Popular Brasileira, como, por exemplo, o machismo, a misóginia, o homossexualismo, o amor romântico e idealizado e o tesão. Em resumo: um portentoso estudo das transformações comportamentais, afetivas e sexuais dos brasileiros.
De sua residência no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, Rodrigo Faour concedeu uma entrevista exclusiva, via e-mail, que publicamos pela primeira vez no “Nada Será Como Antes”. As respostas sempre objetivas e coalhadas de nuances, dadas pelo jornalista e pesquisador, fizeram com que nós, ciosos de nos manter fidedignos ao seu pensamento, evitássemos quaisquer cortes.
Sim, caríssimos leitores, não é todo dia que se encontra alguém que tenha o que dizer de verdade. Abram alas, pois Rodrigo Faour vai passar!
- Como surgiu a idéia de escrever História Sexual da MPB - A Evolução do Amor e do Sexo na Canção Brasileira?
- Partiu da minha amizade com a sexóloga Regina Navarro Lins, que conheci há quase 10 anos, quando ainda era repórter da Tribuna da Imprensa (RJ). Fiz uma matéria de capa do caderno cultural com ela e me apaixonei pela sua visão libertária sobre temas de amor e sexo, por pura identificação. Eu também tinha umas idéias meio diferentes a respeito desses temas, que vieram a se ampliar ainda mais depois que a conheci. Fato é que a admiração foi recíproca e ficamos amigos. Em 2002, ela tentou emplacar uma revista sobre sexo chamada “Muito Prazer”, que infelizmente não passou do segundo volume. Nesta revista, ela me convidou para escrever uma coluna chamada “O amor na MPB”, na qual me sugeriu que eu fizesse justamente uma análise de como certos temas, tipo o da separação, eram vistos por nossos compositores no começo do século e hoje em dia; quem falou de uma forma mais libertária do tema e quem continua insistindo no peso do amor romântico idealizado. Era uma idéia excelente e pensei na ocasião: “Puxa, depois de uns dois anos de revista, eu poderia reunir essas crônicas todas num livro”. Como a revista não foi adiante, eu decidi não desperdiçar esta idéia e transformá-la num livro logo de uma vez.
- O livro analisa o amor e o sexo no cancioneiro brasileiro desde a maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1827-1935) à funkeira cantora carioca Tati Quebra Barraco, num total de 1.300 músicas analisadas. Como foi realizar tal pesquisa?
- Na verdade, eu regressei bem mais no tempo. O livro começa no século XVIII com o nosso primeiro compositor a fazer uma mú
sica que podemos chamar de popular brasileira, da forma que conhecemos hoje, o Domingos Caldas Barbosa. E vem até hoje, não só retratando a Tati como outros funkeiros e também artistas da MPB mais tradicional. Há canções citadas no livro compostas entre 2005 e 2006 dos novos CDs de Caetano Veloso, Marina e Martinho da Vila, por exemplo. Como dediquei boa parte dos meus 34 anos à música brasileira, já tinha uma certa intimidade com seus mais variados gêneros, então tratei de pesquisar a parada de sucessos, ano a ano para não esquecer de nenhuma canção importante, viajar na minha memória afetiva de tantas canções e pesquisar gêneros os quais eu não tinha tanto conhecimento, como as músicas do início do século XX e dos séculos XVIII e XIX, tais como modinhas, lundus, maxixes e cançonetas de inspiração francesa. Depois classifiquei-as em temas e fui enquadrando-as em cada um dos sete capítulos idealizados por mim (O amor mal-resolvido; a mulher; o gay; a sensualidade; o duplo sentido e a sacanagem; o maxixe & o funk; e os transgressores em geral). Muita coisa ficou de fora, privilegiei as de maior sucesso ou as de letras mais curiosas que espelhassem melhor a evolução das mentalidades em relação ao nosso comportamento afetivo e sexual dos últimos 250 anos.
- Por que você decidiu privilegiar as letras das canções e não seu valor estético?
- Se eu fosse partir por uma linha de só citar músicas bem feitas, melodiosas, e com um tipo de poesia tida como de bom gosto, seria preconceituoso e falaria apenas da evolução de comportamento da classe média-alta bem pensante. Quis fazer um estudo mais abrangente e por isso fiz questão de citar fartos exemplos dos estilos mais populares, que em geral costumam ser os mais picantes, pois na classe mais pobre o sexo sempre foi encarado de uma forma mais natural até do que na classe média-alta, ainda que todos os estratos sociais sempre tenham gerado algum tipo de preconceito sexual nos mais variados momentos de nossa história.
- O livro mostra que amores sofridos, machismo e misógina sempre estiveram presentes dentro da MPB. Para você, estes preconceitos e lugares comuns tendem a desaparecer com o tempo ou permanecerão como temas de nossos compositores?
- Eu adoraria responder que sim, mas a humanidade é tão atrasada... Quando a gente pensa que ela vai andar pra frente, dá três passos para trás. Muita coisa mudou e muita coisa permanece igual, como nos primórdios da humanidade. Também há uma variação de região para região em nosso próprio país com setores mais avançados e retrógrados. Fora que ainda hoje há uma diferença muito grande entre o que se faz e o que se fala. Continua um preconceito em assuntos de sexo e ainda hoje o homem sempre pode muito mais do que a mulher. O homem garanhão é valorizado e a mulher que gosta de muitos parceiros é vista como “galinha”. Homossexualidade ainda é tabu na maioria de nossas cidades, apesar de ser tão praticada... Se os avanços do movimento feminista e gay são irreversíveis, ainda assim me parece que durante um bom tempo ainda haverá muito preconceito e tabus com relação à nossa sexualidade. E a nossa música vai continuar documentando o que faremos daqui para frente. É viver para crer.
- Dá para você citar algumas canções ou discos fundamentais para se observar o sexo e o amor dentro da MPB? E afinal, para você estes dois temas estão sempre atrelados ou acontecem de forma separada?
- A última música citada no livro é a balada “Amor e sexo”, de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor, grande sucesso de 2003. Uma letra sensacional que justamente diz que amor e sexo podem andar juntos, mas são independentes. E muita água rolou na MPB até que essas duas grandezas fossem encaradas de forma separada, dando muito o que falar. Citar uma ou outra música é difícil, só lendo o livro. Cada capítulo fala das músicas mais importantes com relação à sensualidade, duplo sentido, do sexo gay, do homem, da mulher, erotismo, pornografia, enfim... São centenas de músicas importantes e representativas. Aleatoriamente posso citar três de gêneros totalmente distintos: “Da cor do pecado”, de Bororó, exemplo raro de sensualidade nos anos 30, “Cavalgada”, de Roberto & Erasmo, bela cena de cama dos anos 70, e “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá”, de Fausto Fawcett e Carlos Laufer, sobre uma prostituta poderosa em meio ao caos urbano carioca dos anos 80.
- Você parece fazer um elogio virtuoso e subversivo do lugar do feminino no mundo, através das letras de compositoras como Marina Lima, Joyce, Rita Lee etc. Afinal, o mundo está ficando mais feminino, mais poético (sem pieguismos) e cheio de infinitas possibilidades?
- Acho que estamos vivendo uma transição e tanto de costumes, pois o mundo mudou radicalmente em termos de comportamento nos últimos 30 anos. E a MPB prova isso. Ao invés de culpar a mulher por tudo que dava errado nos relacionamentos, como fizeram nossos compositores até o início dos anos 60, eles passaram nos 70 a vestir a sua camisa e falar de seus dilemas, problemas e de sua busca pelo prazer. Seja autores populares, como Odair José, Wando, Roberto & Erasmo, ou mais sofisticados como Gonzaguinha, Vitor Martins (com Ivan Lins), Aldir Blanc (com João Bosco), Fernando Brant (com Milton Nascimento), além de Chico, Caetano e Gil. As nossas compositoras também começaram a botar mais as manguinhas de fora - de Joyce, Fátima Guedes, Marina, Rita Lee e Ângela Ro Ro a Vanusa e Anastácia. Hoje, rola uma certa caretice no ar perto do que foi a MPB dos anos 70 e 80. Entretanto, vivemos - como já disse - um período de transição, de acerto de ponteiros. Depois de 5 mil anos de permanência do patriarcado no poder, o masculino está em crise, não sabe direito o seu papel. A mulher também ainda não sabe direito que homem ela quer. O gay também não sabe se quer ser a superfêmea ou o supermacho. Enfim, o mundo pode ter ficado mais feminino, mas a humanidade ainda está digerindo essa igualdade de direitos. E a MPB, de alguma forma, para o bem ou para o mal, é testemunha.
- Por que você decidiu explorar a temática gay no livro? Havia uma necessidade de explorar estas fronteiras quase sempre delicadas e cheias de tabus dentro da MPB?
- Claro. É preciso que o grande público - e não apenas o gueto homossexual - tome conhecimento de como canções de amor entre iguais ainda são pouco compostas e gravadas pelos nossos grandes intérpretes, ainda que tenhamos tantos artistas gays e bissexuais (não assumidos) na MPB. Existem muitas referências a personagens gays e lésbicos na MPB, principalmente a partir dos anos 70, mas as canções de amor bem resolvido, realizado, sensual e sem neurose entre iguais ainda são ínfimas. E isto me parece ridículo, visto que sempre fomos um povo dado a este tipo de sexo, desde o tempo do Brasil colônia. Não é por acaso que a epígrafe deste capítulo é o forró “Por debaixo dos panos”, gravado por Ney Matogrosso em 1982, que bem que poderia ser nosso Hino Nacional. Pois somos os reis da dissimulação.
- Quando Tati Quebra Barraco canta: “de ladinho a gente gosta/ se tu não tá agüentando/ pára um pouquinho/ tá ardendo/ assopra/ ou Dako é bom, Dako é bom/ calma é só marca de fogão”, não há de certa forma uma entrega como objeto do ser feminino ao discurso do mesmo, o homem?
- Acho que o neofunk carioca é pura diversão, pura sacanagem. Não dá para levar as coisas tão a sério. Os homens alfinetam as mulheres e elas respondem - às vezes com as mesmas armas dos homens. No fundo eles e elas só querem se seduzir e transar gostoso. São letras de pura libido adolescente, como já faziam Eduardo Araújo, Carlos Imperial, Erasmo Carlos e Renato e Seus Blue Caps na era da Jovem Guarda, ou Ultraje a Rigor, Blitz e Kid Abelha nos anos 80 e Raimundos nos anos 90. Só muda o ritmo, a época e a aspereza das palavras. Por outro lado, o neofunk pela primeira vez na música brasileira toca em alguns temas tabus, como o da mulher que releva a performance ruim do homem na cama ou de que a mulher não gosta tanto de sexo quanto o homem. Também já critica a guerra existente entre a mulher fiel e a amante de forma ultra-bem-humorada. Como diria Tati, “o tempo já é moderno e sexo tem que variar”. Atualmente, não acho o neofunk tão machista quanto se apregoa. É tudo uma questão de farra mesmo e as garotas sabem mais o que querem do que se possa imaginar.
- Você destaca nomes da atualidade que conseguiram de alguma forma se desvencilhar de certos chavões estereotipados do amor romântico, estabelecendo padrões de comportamento inovadores. Esta ruptura é importante em que medida para você?
- Não é que seja importante para mim, é importante, sim, para o Brasil inteiro (risos). Acho que falta agora a MPB mais intelectualizada e dita de bom gosto conseguir penetrar nesse campo e novamente transgredir - até de uma forma não tão adolescente, como no atual funk carioca, porém mais madura - certas questões sexuais e também abrirem a cabeça aos novos padrões de relacionamento afetivo entre as pessoas. As velhas balelas que o amor romântico prega: “amar até que a morte os separe”, “só é possível ter tesão por uma pessoa de cada vez”, “a traição é pecado mortal”, “o homem gosta mais de sexo que as mulheres” etc, tudo isso já está caindo por terra na vida real e na música brasileira parece que, entre os jovens autores, só a turma do funk percebeu isso. Resta rezar para que o padrão do pop/romântico e pop/light das FM imposto pela indústria, e que o nível de senso crítico de nossos letristas mais intelectualizados permitam que esses assuntos deixem de ser tabus e sejam também retratados numa MPB mais sofisticada, e não apenas na ultra-popular criada na periferia. Nossa língua portuguesa é sensacional e nosso cancioneiro tem um histórico espetacular de cronista nos assuntos de amor e sexo. Espero que as novas gerações levem adiante este bastão também no campo da ousadia em nossa música, porque na vida real os relacionamentos já estão mudando muito.
- A seu ver, há diferenças (de intensidade e forma) a serem destacadas entre as letras das canções de amor e sexo ditas “clássicas” (Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil) e as “bregas” (Wando, Odair José e companhia)?
- Na maior parte das vezes a suposta breguice da música está ligada ao fato de como ela é interpretada e no arranjo musical da mesma. Há incontáveis exemplos de músicas de Peninha, Odair José, Roberto Carlos e outros que quando são regravadas por um Caetano, uma Gal ou uma Bethânia viram outras canções. Em geral, o segredo está na intenção da interpretação - vocal e instrumental - mais do que em qualquer outro atributo musical.
- Gostaria que comentasse sobre o trabalho realizado por você na reedição de toda a discografia da cantora baiana Maria Bethânia este ano. Há outros nomes que necessitariam de um mesmo resgate?
- Tenho feito um trabalho bacana de reedições e compilações de grandes nomes da MPB da Era do Rádio e da turma que começou na MPB nos anos 60 e 70. Dou atenção especial aos encartes, sempre incluo textos informativos e se faço coletâneas dou importância à seqüência, para não virar um saco de gatos. A música brasileira é um baú sem fundo, e sempre haverá o que se resgatar e reciclar. No caso da Bethânia, trouxe de volta uma discografia essencial e que os fãs estavam desesperados para terem em CD do jeito que ela merecia ser reeditada com capas e encartes originais, todas as letras e informações de bastidores sobre cada álbum. Sou minucioso e perfeccionista, e acho que por isso Bethânia me autorizou a reeditar a sua obra inteira, num ano em que ela já tinha vários produtos no mercado ou ainda por lançar. Foram 34 cds em 3 gravadoras, vendidos de forma avulsa. Consegui realmente um feito inédito na indústria fonográfica. Nem eu mesmo sei como consegui. Acho que neste caso Mãe Menininha do Gantois ajudou lá de cima (risos).
- Quais são seus planos para o futuro?
- Em termos de livro, não pensei ainda. Estou digerindo este ainda. Quero que as pessoas o leiam muito e reflitam até sobre suas próprias vidas afetivas e sexuais. Em termos de CDs, tenho vários por lançar. Acabaram de sair duas coletâneas duplas lindas produzidas por mim, uma em homenagem aos 65 anos do Tremendão (“Erasmo 65 - Na Estrada”) e outra com gravações inéditas em CD de Claudette Soares (“A bossa sexy de Claudette Soares”), em que privilegio o tipo de bossa que ela gravou no auge da carreira, entre 1967 e 1971, um misto de samba-jazz, bossa nova, pilantragem e samba-rock muito moderno. Os próximos lançamentos são 13 CDs da série “As Divas”, da Warner Music, resgatando velhos vinis gravados na Continental e na Chantecler por grandes cantoras, como Emilinha Borba, Doris Monteiro, Isaurinha Garcia, Carmen Costa, Ângela Maria, Aracy de Almeida, Helena de Lima, Ana Lúcia e Vanusa. O resto é segredo! Me aguardem! (risos).
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